Antes dos gramados impecáveis, das transmissões em HD e das análises em tempo real nas redes sociais, o futebol brasileiro se forjou em campos de terra, traves tortas e chuteiras gastas. É nesse cenário que nasce a figura de “Zinho enceradeira”, personagem típico da várzea paulistana, símbolo de uma época em que drible valia quase tanto quanto gol – e em que a memória se guardava em fotos amareladas, recortes de jornal e camisas penduradas atrás da porta.
Mais do que um apelido curioso, “Zinho enceradeira” representa um estilo de jogo, uma forma de viver o futebol e, hoje, um universo de colecionismo que cresce à medida que a nostalgia da várzea ganha espaço entre torcedores, pesquisadores e apaixonados por memória esportiva. Afinal, como preservar histórias que raramente saíram das margens dos rios, dos terrenos baldios e dos campos de bairro?
Quem era o “Zinho enceradeira” da várzea?
Na várzea, quase ninguém é chamado pelo nome de batismo. O apelido nasce no jogo, no vestiário ou na esquina do bar. O “Zinho enceradeira” não foge à regra: meia-esquerda de toque curto, drible curto e giro rápido sobre a bola, ele ganhou o apelido porque, segundo os adversários, “ficava rodando em cima da redonda, igual enceradeira em chão de taco”.
Entre os anos 1980 e 1990, personagens como ele eram presença certa em campos de bairros da Zona Leste de São Paulo, da periferia de Guarulhos, de São Bernardo, Osasco e tantas outras cidades. Sem contrato profissional, mas com agenda de craque: torneio no sábado à tarde por um time, amistoso no domingo de manhã por outro, final de campeonato de bairro no domingo à tarde por um terceiro.
O “Zinho” típico da várzea era aquele jogador que:
Se, no profissional, os anos 80 marcaram a ascensão de camisas 10 clássicos – de Zico a Pita – na várzea o “Zinho enceradeira” era a versão popular desse meia habilidoso, com uma diferença: não tinha TV, não tinha súmula da federação, não tinha contrato. O que mantinha sua história viva era a memória dos que viram, as fotos em campeonatos de bairro e, quando muito, uma nota de rodapé em jornal de bairro.
A era de ouro da várzea e a construção do mito
Para entender por que a figura de “Zinho enceradeira” desperta tanta nostalgia, é preciso olhar para a várzea dos anos 1970 a 1990. Nesse período, especialmente em São Paulo e em outras grandes capitais, o calendário varzeano chegava a ter mais de 50 campeonatos espalhados pela cidade, muitos com finais que reuniam milhares de pessoas em torno do campo.
Era comum ver finais com arquibancadas improvisadas, alambrado cheio e até venda de ingressos simbólicos, usados para bancar arbitragem, uniforme novo ou um troféu maior. Vários relatos de cronistas de bairro e organizadores de torneios daquela época descrevem a várzea como um “brasileirão paralelo”, com:
No meio desse ambiente altamente competitivo, tecnicamente forte e socialmente enraizado, o “Zinho enceradeira” virava referência. Era ele quem decidia semifinal em campo esburacado com um drible em espaço curto, quem ganhava falta na entrada da área segurando o tranco do zagueiro quarentão, quem conduzia a bola mesmo sob vaia de torcedores adversários em cima do alambrado.
Os números, aqui, não estão em súmulas oficiais, mas na memória coletiva: “fez mais de 300 gols na várzea”, “jogou por mais de 30 times diferentes”, “tinha jogo marcado todo fim de semana por pelo menos dois ou três clubes”. Não é possível comprovar todas essas estatísticas, mas o fato de serem repetidas, décadas depois, ajuda a dimensionar o lugar simbólico desse tipo de jogador.
O apelido “enceradeira”: estilo, provocação e identidade
O futebol de várzea sempre foi laboratório de linguagem. De lá saíram apelidos inesquecíveis: Foquinha, Biro-Biro, Careca, Tupanzinho, Tiziu. O “enceradeira” entra nesse dicionário afetivo como uma síntese perfeita de estilo de jogo.
Na prática, chamar alguém de “enceradeira” tinha dois sentidos, muitas vezes simultâneos:
Não raro, em entrevistas informais para projetos de memória da várzea, antigos zagueiros recordam histórias de “enceradeiras” que “só aprendiam na marra, depois de tomar umas duas ou três chegadas mais fortes”. Era o choque entre o romantismo do drible e o pragmatismo do resultado – conflito que atravessa toda a história do futebol brasileiro.
Ao mesmo tempo, o apelido fixava identidade. Quem era “Zinho enceradeira” numa região dificilmente seria confundido com outro Zinho. Em campeonatos, bastava alguém dizer “é aquele Zinho enceradeira” que todos já sabiam quem estava em campo. Era a marca registrada de um estilo que hoje custa caro encontrar até nos gramados profissionais.
Memórias de várzea: o que sobrou desses domingos de terra?
Ainda que a várzea tenha perdido muitos campos para a urbanização, condomínios e obras viárias, o que sobrevive desse universo é, sobretudo, memória. E aqui entra um ponto central: a história de personagens como “Zinho enceradeira” raramente está em arquivos oficiais; ela se espalha em pequenos fragmentos.
Quem decidiu, nos últimos anos, pesquisar ou documentar esse passado encontra uma variedade impressionante de fontes:
Muitas dessas peças ficaram décadas dentro de guarda-roupas, caixas de papelão ou bares de bairro. Só recentemente, com o avanço de projetos de memória do futebol, museus comunitários e ações de colecionadores, esse material começou a ganhar outro status: o de documento histórico.
E onde entra o “Zinho enceradeira” nisso? Em quase todo lugar. É a figura que aparece:
À medida que esses registros são digitalizados, compartilhados em redes sociais e expostos em eventos de memória, a figura do “enceradeira” ganha nova dimensão: deixa de ser lembrança de bar para virar personagem de um capítulo maior da história do futebol brasileiro.
Colecionismo de várzea: de camisa rasgada a relíquia
Se existe, hoje, um movimento organizado de colecionadores de camisas de clubes profissionais, seleções e até times extintos, um segundo movimento paralelo começa a crescer: o colecionismo da várzea. A lógica é parecida, mas com um grau adicional de dificuldade – e emoção.
Ao contrário dos grandes clubes, os times de várzea:
Isso faz com que uma camisa usada por um “Zinho enceradeira” em final de bairro, nos anos 80, valha hoje muito mais pela história que carrega do que pelo valor financeiro. Ainda assim, colecionadores especializados em várzea têm buscado:
Em feiras de antiguidades, encontros de colecionadores e até grupos de redes sociais, não é raro ver conversas em torno de peças assim: “Essa aqui era do time tal, o meia deles parecia uma enceradeira, lembra?” O apelido, mais uma vez, serve de ponte entre memória pessoal e objeto de coleção.
Como preservar a memória do “Zinho enceradeira” e da várzea
Para quem viveu aquela época, a primeira reação é quase sempre a mesma: “Se eu soubesse, tinha guardado mais coisa”. Mas ainda há tempo de resgatar boa parte dessa história. E esse resgate não é exclusivo de pesquisadores ou colecionadores profissionais – qualquer ex-jogador, torcedor ou morador de bairro pode ajudar.
Algumas iniciativas práticas têm se mostrado eficientes:
Nesse processo, personagens como “Zinho enceradeira” passam a ser mais do que figura folclórica. Eles viram fio condutor para histórias sobre:
O colecionismo, nesse sentido, não é apenas hobby. Ele funciona como ferramenta de preservação da memória social. Uma camisa da várzea pendurada na parede diz muito mais do que o escudo bordado; ela guarda vozes, gritos, comemorações, frustrações e domingos inteiros dedicados ao jogo.
Da terra batida ao museu: quando a várzea entra na vitrine
Nos últimos anos, algumas experiências pontuais ajudaram a dar visibilidade a esse universo. Exposições temporárias em museus do futebol, centros culturais de bairro e até secretarias de esportes municipais vêm abrindo espaço para mostrar ao público aquilo que, por muito tempo, ficou restrito a quem viveu a várzea de perto.
Nesses eventos, é comum ver:
Ao entrar em espaços assim, o ex-jogador de várzea transforma o olhar sobre si mesmo. O que antes era “só futebol de fim de semana” passa a ser reconhecido como parte de uma história maior, digna de preservação, estudo e orgulho. E o torcedor comum, acostumado a ver apenas grandes estrelas na TV, descobre um futebol tão intenso quanto, disputado há poucos quilômetros de casa.
A nostalgia do drible e a pergunta que fica
Em um futebol cada vez mais físico, acelerado e orientado por estatísticas, não é difícil entender por que a figura do “Zinho enceradeira” ganha contornos quase românticos. Ele representa a era em que o drible podia ser objetivo em si, em que “prender a bola e fazer o zagueiro de bobo” valia aplauso imediato, ainda que o treinador ficasse irritado à beira do campo.
É claro: nem todo “enceradeira” seria solução no futebol moderno, assim como nem todo craque de várzea foi injustiçado pelo sistema. Há mitos, exageros e memórias seletivas nesse processo. Mas também há um dado concreto: a várzea foi, por décadas, o principal laboratório de talentos e de estilos de jogo no Brasil, e personagens como o “Zinho enceradeira” foram protagonistas silenciosos dessa construção.
Quando um colecionador exibe uma camisa desbotada de um time amador dos anos 80, ou quando um ex-jogador mostra uma foto em preto e branco em que aparece agachado, com a bola à frente, não está apenas matando saudade. Está, de algum modo, reivindicando lugar na história.
No fim das contas, talvez a grande pergunta seja: quantos “Zinhos enceradeira” ainda cabem no futebol de hoje? Em gramados sintéticos, com escolinhas organizadas e planilhas de desempenho, ainda há espaço para o drible que roda a bola como enceradeira, irrita adversário, arranca risos da arquibancada e vira história repetida no bar da esquina?
Enquanto essa resposta não vem, uma coisa é certa: cada camisa preservada, cada foto digitalizada, cada depoimento gravado sobre a várzea ajuda a manter vivo um pedaço desse futebol que antecede as grandes arenas e os patrocínios milionários. E, entre todos os personagens que habitam esse universo, o “Zinho enceradeira” continua girando em nossa imaginação, esparramando zagueiros e encerando, com dribles, o chão da memória esportiva brasileira.
