Memorias do esporte

Ronaldo fenômeno: lesões, títulos e a força da superação na história do futebol

Ronaldo fenômeno: lesões, títulos e a força da superação na história do futebol

Ronaldo fenômeno: lesões, títulos e a força da superação na história do futebol

Quando se fala em “Fenômeno” no futebol, não há dúvida sobre o destinatário do apelido. Ronaldo Luís Nazário de Lima é, ao mesmo tempo, um dos maiores atacantes da história e um dos exemplos mais marcantes de superação que o esporte já produziu. Entre gols históricos, títulos por clubes e seleção, cirurgias delicadas e retornos improváveis, a trajetória de Ronaldo é quase um roteiro pronto de cinema – mas, acima de tudo, é uma história real, feita de dor, disciplina e talento fora da curva.

Da infância em Bento Ribeiro ao primeiro impacto mundial

Nascido em 18 de setembro de 1976, no bairro de Bento Ribeiro, zona norte do Rio de Janeiro, Ronaldo começou em campos de várzea, como tantos outros garotos brasileiros. Sua primeira grande vitrine foi o São Cristóvão, onde começou a chamar atenção pelas goleadas em torneios de base. Em 1993, aos 16 anos, assinou com o Cruzeiro e, em pouco tempo, virou notícia nacional.

Pelo clube mineiro, entre 1993 e 1994, Ronaldo marcou 56 gols em 58 jogos (números frequentemente citados em arquivos do clube e da imprensa da época). Em 1993, ajudou o Cruzeiro a conquistar a Copa do Brasil, ainda como coadjuvante de um elenco experiente, mas já com lampejos do que viria a ser. Em 1994, foi convocado por Carlos Alberto Parreira para compor o grupo da Seleção Brasileira na Copa do Mundo dos Estados Unidos, aos 17 anos, sem entrar em campo, mas vivendo por dentro a atmosfera do tetracampeonato.

Aquele garoto que assistiu ao tetra do banco de reservas seria, dois anos depois, o principal protagonista ofensivo da Seleção.

PSV, Barcelona e Inter: o fenômeno dos gols (1994–1999)

Logo após a Copa de 1994, Ronaldo foi negociado com o PSV Eindhoven, da Holanda. Em duas temporadas (1994–1996), anotou 54 gols em 57 partidas oficiais. As estatísticas explicam por que, ainda com 19 anos, o brasileiro já era apontado como o centroavante mais promissor do planeta.

Na temporada 1996–97, veio o salto para o Barcelona. Em apenas um ano no clube catalão, Ronaldo marcou 47 gols em 49 partidas. Ganhou a Recopa Europeia, a Copa do Rei e a Supercopa da Espanha. A lista de jogadas antológicas daquele período inclui o gol contra o Compostela, em 12 de outubro de 1996, pela La Liga, em que ele arranca do meio-campo, dribla tudo e todos e finaliza com autoridade. Bobby Robson, técnico da equipe, diria depois:

“Foi o melhor jogador que já treinei. Um fenômeno.”

O apelido pegou. Em 1996, Ronaldo já recebia a Bola de Ouro da France Football e também era eleito pela FIFA o Melhor Jogador do Mundo, feito repetido em 1997. Ainda em 1997, transferiu-se para a Inter de Milão, em uma das negociações mais caras da época.

Na Inter, em 1997–98, Ronaldo viveu um ano de auge físico e técnico. Foram 34 gols na primeira temporada, título da Copa da UEFA (atual Liga Europa) e uma sequência de atuações memoráveis. A final contra a Lazio, em 6 de maio de 1998, ficou marcada pelo drible desconcertante em Marchegiani no terceiro gol da vitória por 3 a 0. Aos 21 anos, o mundo parecia inteiramente aos pés do Fenômeno.

Copa de 1998: brilho, mistério e frustração

Na Copa do Mundo da França, Ronaldo era o grande nome da Seleção. Marcou 4 gols e deu 3 assistências, comandando a equipe até a final contra os anfitriões. Mas o que aconteceu nas horas que antecederam aquele Brasil x França, em 12 de julho de 1998, até hoje alimenta debates.

Na véspera da final, Ronaldo sofreu uma convulsão no hotel da delegação, em Versalhes. Relatos de jogadores e comissão técnica descrevem pânico, preocupação e um ambiente emocionalmente abalado. A escalação inicial divulgada à imprensa não trazia o nome de Ronaldo. Minutos depois, o craque aparecia de volta à lista dos titulares.

Em campo, o Fenômeno esteve irreconhecível. Lento, afastado da área e bem marcado, pouco ameaçou a defesa francesa. O Brasil perdeu por 3 a 0 e o episódio gerou teorias, questionamentos médicos, suspeitas sobre pressões de patrocinadores. Anos depois, o próprio Ronaldo resumiria assim:

“Eu não lembro do que aconteceu. Acordei no hospital, e depois todos sabiam mais da minha vida do que eu mesmo.”

Aquela noite traumática parecia ser o grande fantasma da carreira do atacante. Mas o que viria a seguir mostraria que 1998 ainda não era o fundo do poço.

Lesões no joelho: o corpo cobra seu preço (1999–2001)

O estilo explosivo de Ronaldo – arranques, mudanças de direção bruscas, potência máxima – sempre foi um risco para suas articulações. Em 21 de novembro de 1999, em partida da Inter contra o Lecce, pela Serie A, o atacante saiu lesionado com problemas no tendão patelar do joelho direito. Exames detectaram a gravidade. Ele passou por cirurgia e iniciou um longo processo de reabilitação.

Após cerca de cinco meses afastado, Ronaldo voltou a jogar em 12 de abril de 2000, na final da Copa da Itália, contra a Lazio. Entrou no segundo tempo e, poucos minutos depois, o que se viu em campo chocou o mundo: ao tentar um drible, o joelho direito do brasileiro “cede”, e ele cai gritando de dor. As imagens mostram a patela literalmente saindo do lugar.

Era uma lesão raríssima e extremamente séria no tendão patelar. Seguiu-se uma nova cirurgia, em Paris, e a previsão de que Ronaldo poderia nunca mais atuar em alto nível. Entre 1999 e 2001, o Fenômeno disputou apenas 24 partidas pela Inter. Muitos analistas, na época, consideraram que a era Ronaldo como melhor do mundo havia ficado para trás.

Mas o jogador não aceitou esse diagnóstico como sentença. Com treinos exaustivos, reeducação muscular e uma equipe multidisciplinar, trabalhou em silêncio. Em entrevista anos depois, resumiu:

“Eu treinei como nunca para simplesmente voltar a andar sem dor. O resto veio depois.”

Coreia e Japão 2002: a Copa da redenção

Em 2002, a Seleção Brasileira chegou à Copa do Mundo sob desconfiança. A campanha nas Eliminatórias havia sido irregular, com troca de treinadores e pressão intensa. Luiz Felipe Scolari assumiu o comando em 2001 e, até bem perto da convocação, havia dúvidas se Ronaldo teria condições físicas de disputar o Mundial.

O camisa 9 não apenas foi convocado como se tornou o grande protagonista da campanha. Em sete jogos, marcou 8 gols, sendo artilheiro da Copa. Entre esses gols, alguns momentos são emblemáticos:

  • Gol contra a Turquia, na estreia, em 3 de junho de 2002, mostrando oportunismo e bom posicionamento após tanto tempo fora.
  • O chute de perna direita contra a China, de fora da área, provando que ainda havia potência.
  • A atuação nas quartas de final contra a Inglaterra, participando da virada por 2 a 1 e suportando a carga física de 90 minutos intensos.
  • Os dois gols da final contra a Alemanha, em 30 de junho de 2002, em Yokohama, revertendo o trauma de 1998.
  • O primeiro gol na final simboliza a essência de um centroavante: rebote do chute de Rivaldo, presença de área, frieza na finalização. No segundo, um toque rápido e preciso, após receber novamente de Rivaldo. Oliver Kahn, eleito melhor jogador do torneio, nada pôde fazer.

    Ao erguer a taça, com o peculiar corte de cabelo “cascão”, Ronaldo encerrava um ciclo de quatro anos marcado por mistério, cirurgia, dúvidas e descrédito. A Bola de Ouro da France Football e o prêmio de Melhor do Mundo da FIFA, conquistados novamente em 2002, coroaram essa volta por cima.

    Real Madrid e o auge midiático dos “Galácticos”

    Em 2002, após a Copa, Ronaldo foi contratado pelo Real Madrid, então em plena era dos “Galácticos”. Na estreia, em 6 de outubro, contra o Alavés, saiu do banco para marcar dois gols em poucos minutos, sob um Santiago Bernabéu em êxtase.

    Entre 2002 e 2007, Ronaldo fez 177 jogos oficiais pelo clube merengue e marcou 104 gols. Conquistou o Campeonato Espanhol (2002–03), a Supercopa da Espanha (2003) e foi artilheiro de La Liga na temporada 2003–04, com 24 gols.

    Os números, isoladamente, já impressionam. Mas é preciso lembrar que, naquele período, Ronaldo já não era o atleta fisicamente perfeito do Barcelona e da primeira fase de Inter. Tratava-se de um atacante adaptado a um corpo marcado por cirurgias, que passou a economizar arranques, escolher melhor os momentos de explosão e, sobretudo, refinar a leitura de jogo.

    No Real, ele conviveu com lesões musculares e os primeiros sinais públicos de problemas de metabolismo e de peso. Foi criticado pela imprensa espanhola, alvo de piadas, mas continuou entregando gols em média altíssima. Zinedine Zidane, companheiro naquela fase, sintetizou:

    “Ele não precisava correr 90 minutos. Bastava estar lá quando a bola chegasse, e quase sempre era gol.”

    O fim na Inter, a passagem pelo Milan e a Copa de 2006

    Antes de deixar a Itália definitivamente, Ronaldo ainda viveu momentos de tensão na Inter, com parte da torcida o vendo como culpado pelas frustrações esportivas do clube no fim dos anos 1990 e início dos 2000. Em 2007, o roteiro ganhou contornos ainda mais polêmicos: o brasileiro foi contratado pelo Milan, rival histórico da Inter.

    No Milan, entre 2007 e 2008, Ronaldo fez 20 jogos e marcou 9 gols. Em 13 de fevereiro de 2008, em partida contra o Livorno, sofreu mais uma gravíssima lesão: ruptura do tendão patelar, desta vez do joelho esquerdo. Aos 31 anos, outra vez surgiram projeções de aposentadoria.

    Entre esses episódios, veio a Copa do Mundo de 2006, na Alemanha. Mesmo longe da melhor forma, Ronaldo foi convocado por Carlos Alberto Parreira. Marcou 3 gols, chegando a 15 gols em Copas do Mundo e superando Gerd Müller como maior artilheiro da história dos Mundiais à época (recorde superado depois por Miroslav Klose, em 2014).

    Os gols contra Japão e Gana mostraram que, mesmo em fase física questionada, o faro de gol continuava intacto. O Brasil, no entanto, caiu nas quartas de final diante da França, em jogo em que toda a equipe esteve abaixo das expectativas.

    Corinthians, despedida em casa e a luta contra o próprio corpo

    Após a grave lesão no Milan e mais um período de recuperação, Ronaldo assinou com o Corinthians em dezembro de 2008. O retorno ao futebol brasileiro, cercado de dúvidas sobre sua forma física, rapidamente se transformou em um fenômeno de mídia e bilheteria.

    Em 2009, o Fenômeno foi decisivo na conquista do Campeonato Paulista e da Copa do Brasil. Entre gols importantes, dois são frequentemente lembrados pelos corintianos:

  • O gol de cabeça contra o Palmeiras, em 8 de março de 2009, seu primeiro gol pelo Corinthians, aos 47 do segundo tempo, no Pacaembu lotado.
  • O gol na final da Copa do Brasil contra o Internacional, em 17 de junho de 2009, com uma arrancada que lembrou, em escala menor, o Ronaldo dos anos 1990.
  • Pelo Corinthians, Ronaldo disputou 69 partidas oficiais e marcou 35 gols. Ao mesmo tempo, ficou cada vez mais evidente a batalha contra as lesões musculares e, posteriormente, o diagnóstico de hipotireoidismo, condição que o próprio jogador revelou publicamente após anunciar sua aposentadoria, em fevereiro de 2011.

    “Eu queria continuar, mas o meu corpo não deixa mais. Perdi para o meu corpo”, afirmou em coletiva emocionada, cercado de troféus e camisas históricas.

    Números de uma carreira extraordinária

    Os números de Ronaldo ajudam a dimensionar o impacto de sua carreira, mesmo com períodos longos afastado por lesões:

  • Mais de 400 gols oficiais somando clubes e seleção principal (os números variam conforme critérios de contagem, mas giram em torno de 414 gols em 616 jogos).
  • Dois títulos de Copa do Mundo (1994 e 2002), uma final disputada (1998) e 15 gols marcados em Mundiais.
  • Três vezes eleito Melhor Jogador do Mundo pela FIFA (1996, 1997, 2002).
  • Duas Bolas de Ouro da France Football (1997 e 2002).
  • Títulos nacionais e continentais por Cruzeiro, PSV, Barcelona, Inter, Real Madrid, Milan (sem títulos em campo) e Corinthians.
  • Essas marcas foram construídas apesar de duas cirurgias gravíssimas no tendão patelar, inúmeros afastamentos e críticas recorrentes à sua condição física. Se imaginarmos um Ronaldo sem lesões, quantos gols a mais teríamos visto? Quantos títulos teriam mudado de dono? A pergunta fica apenas no campo da especulação, mas reforça a percepção do tamanho do que ele fez com um corpo constantemente no limite.

    Lesões, títulos e o legado da superação

    A trajetória de Ronaldo Fenômeno é, inevitavelmente, marcada por contrastes: auge precoce e quedas bruscas, prêmios individuais e temporadas inteiras comprometidas por problemas físicos. Mas é justamente nesse contraste que sua história ganha uma dimensão humana rara no esporte de alto rendimento.

    Ao observar sua carreira em perspectiva, é possível identificar alguns elementos centrais dessa narrativa de superação:

  • Reinvenção constante: Ronaldo de 1996 não era o mesmo de 2002 ou de 2009. Ele adaptou seu jogo, reduzindo arrancadas, aprimorando posicionamento e finalização, para seguir decisivo mesmo com limitações físicas.
  • Resiliência mental: Voltar de uma lesão de tendão patelar já é difícil. Voltar duas vezes, em alto nível, vencendo desconfianças internas e externas, exige uma força psicológica raríssima.
  • Capacidade de decidir em jogos grandes: Finais da Copa de 2002, mata-matas por clubes, clássicos regionais – nos momentos de maior pressão, ele manteve o faro de gol e a frieza.
  • Influência sobre gerações seguintes: Atacantes como Luis Suárez, Lewandowski, Benzema e tantos outros citam Ronaldo como referência de centroavante completo, capaz de driblar, finalizar, criar jogadas e ser decisivo em todos os aspectos do ataque.
  • Hoje, já aposentado dos gramados e atuando como empresário e dirigente – com passagem no Comitê Organizador Local da Copa de 2014 e, mais recentemente, como proprietário da SAF do Cruzeiro e do Real Valladolid –, Ronaldo segue usando sua imagem e experiência para influenciar o futebol fora das quatro linhas.

    Lesões e títulos, no fim das contas, são parte de uma mesma equação na vida do Fenômeno. Sem as primeiras, talvez a história não tivesse o mesmo peso emocional. Sem os segundos, a superação não teria sido tão amplamente reconhecida. O que fica, para quem acompanha o esporte, é a sensação de ter visto um jogador capaz de redefinir o papel do centroavante – e, ao mesmo tempo, um atleta que humanizou a ideia de genialidade, mostrando que até os fenômenos precisam, um dia, lidar com seus próprios limites.

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