Memorias do esporte

Programa tv cultura anos 90: relembre as atrações que formaram uma geração de torcedores

Programa tv cultura anos 90: relembre as atrações que formaram uma geração de torcedores

Programa tv cultura anos 90: relembre as atrações que formaram uma geração de torcedores

Antes da internet rápida, antes dos canais esportivos 24 horas, uma boa parte da formação do torcedor brasileiro passava obrigatoriamente pela TV aberta. Nos anos 90, em São Paulo e em muitas outras regiões do país, um canal em especial tinha um papel diferente na maneira de falar de esporte: a TV Cultura.

Enquanto outras emissoras apostavam em gritos, polêmicas vazias e resultados do dia, a Cultura oferecia debates mais calmos, transmissões de base, entrevistas longas e programas que tratavam o esporte como parte da formação cultural. Foi nessa mistura de jornalismo, educação e paixão que se formou uma geração de torcedores que aprendeu a ver o jogo para além do placar.

Relembrar esses programas é, de certa forma, revisitar um período em que o futebol e outros esportes ainda eram consumidos com mais paciência. Quem se sentava em frente à TV Cultura nos anos 90 saía com mais argumentos para discutir tática no recreio, no bar ou na arquibancada.

Anos 90: quando a TV aberta ainda educava o torcedor

Em 1990, o cenário era outro. Não havia redes sociais, os videogames ainda eram simples e a TV ainda organizava o tempo de muita gente. Os campeonatos nacionais e estaduais estavam concentrados em poucas emissoras, e o noticiário esportivo, em geral, era essencialmente voltado para o futebol profissional masculino.

A TV Cultura, emissora pública com vocação educativa, ocupava um espaço diferente. Não tinha o poder de compra dos grandes direitos de transmissão, mas tinha liberdade editorial para apostar em formatos menos óbvios:

  • mesas redondas sem plateia histérica;
  • debates com jornalistas e ex-atletas com tempo para argumentar;
  • transmissão de categorias de base, quando o jogador ainda era promessa;
  • documentários e entrevistas em profundidade.
  • Essa combinação marcou especialmente quem era criança ou adolescente naquela década. Entre 1990 e 1999, a Cultura ajudou a construir um tipo de torcedor mais curioso: aquele que queria saber por que o time jogava daquele jeito, e não só se tinha vencido ou perdido.

    Cartão Verde: a mesa-redonda que ensinou o Brasil a falar de tática

    Lançado em 1993, o Cartão Verde foi, para muitos, a porta de entrada para um novo jeito de conversar sobre futebol na televisão. Em vez de apenas repetir lances e reclamar da arbitragem, o programa apresentado na TV Cultura se propunha a analisar o jogo com mais profundidade, em clima quase de bate-papo de bar, mas com informação.

    Nos seus primeiros anos, o Cartão Verde tinha nomes de peso do jornalismo e do futebol. Em 1993, a atração reunia, em diferentes momentos, figuras como Juca Kfouri, Sócrates e Armando Nogueira, entre outros convidados recorrentes. Era comum o telespectador se deparar, em uma mesma noite, com:

  • debate tático sobre o 4-4-2 que dominava o futebol brasileiro da época;
  • comparações entre estilos de técnicos como Telê Santana, Vanderlei Luxemburgo e Carlos Alberto Parreira;
  • discussões sobre a formação de base, algo ainda distante do noticiário diário;
  • críticas abertas à cartolagem, em tempos de pouca transparência.
  • Em uma edição de 1994, por exemplo, Sócrates comentou, já como ex-jogador, o papel do torcedor na pressão sobre os clubes: “O torcedor precisa entender que não é só cobrar resultado. É cobrar projeto. Se não tiver projeto, o resultado vira acaso”, disse ele em entrevista no programa, naquele contexto pós-Copa do Mundo.

    Para quem tinha entre 10 e 20 anos na época, ouvir um dos maiores ídolos da história da seleção falar em “projeto” era algo raro na TV aberta. O Cartão Verde criou uma espécie de escola informal de análise tática, popularizando termos e conceitos que antes ficavam restritos a rodas de técnicos e cronistas especializados.

    Outro aspecto importante era o ritmo. Sem gritaria, os participantes tinham tempo para expor raciocínios e discordar com argumentos, não no grito. Essa estética – mesa simples, poucos recursos gráficos, foco no conteúdo – ajudou a consolidar a imagem da Cultura como um espaço em que o torcedor ia para pensar o jogo, não para descarregar raiva.

    Copa São Paulo na Cultura: férias de janeiro viram laboratório de craques

    Se o Cartão Verde formava opinião, a Copa São Paulo de Futebol Júnior transmitida pela TV Cultura formava olhares. Nos anos 90, a famosa “Copinha” era uma das grandes atrações de janeiro na tela da emissora, especialmente para quem passava as férias em casa.

    Era a chance de ver, em tempo real, o nascimento de futuros profissionais. Antes de o termo “scout” virar moda, o torcedor já fazia, mentalmente, sua própria lista de promessas:

  • goleiros que chamavam atenção pela estatura e elasticidade;
  • meias habilidosos que pareciam prontos para o time principal;
  • centroavantes que se destacavam pela força física mesmo ainda na base.
  • Jogadores que depois seriam protagonistas no futebol brasileiro e internacional passaram pela vitrine de janeiro exibida pela Cultura. A década de 90 foi especialmente rica em talentos revelados na competição, ainda que nem todos tenham explodido no profissional.

    Em 1990, por exemplo, a Copinha já recebia atenção especial da emissora, em um contexto de pós-Copa da Itália em que o país buscava novos ídolos. No meio da década, em 1995 e 1996, a presença de grandes clubes com suas equipes sub-20 – Corinthians, São Paulo, Santos, Palmeiras, e também times de fora do estado – reforçava o caráter quase “laboratorial” da competição.

    Para o público, havia um ritual: acordar mais cedo em janeiro, acompanhar jogos em estádios menores, decorar nomes de jogadores que talvez nunca mais aparecessem na TV. Mas, de tempos em tempos, um desses garotos surgia anos depois em uma final de Campeonato Brasileiro, de Libertadores ou até de seleção brasileira. E o torcedor da Cultura podia dizer: “eu vi esse cara jogar na base”.

    Em entrevistas posteriores, alguns ex-jogadores lembram da importância daquela exposição. Em depoimento concedido anos depois à imprensa, um meia revelado na Copinha nos anos 90 resumiu assim: “Jogar com a transmissão da Cultura era diferente. A família toda assistia, os amigos da escola comentavam no dia seguinte. Aquilo dava responsabilidade e, ao mesmo tempo, uma sensação de estar entrando de verdade no futebol”.

    Documentários, entrevistas e bastidores: o esporte tratado como cultura

    Outra marca da TV Cultura nos anos 90 foi o jeito de tratar o esporte fora do campo. Quando não tinha a bola rolando, a emissora abria espaço para:

  • documentários sobre a história de clubes e estádios;
  • perfis de atletas olímpicos e de modalidades pouco abordadas;
  • debates sobre política esportiva, financiamento e formação de base;
  • entrevistas longas em programas de jornalismo, como o “Roda Viva”.
  • Em 1993, por exemplo, o “Roda Viva” recebeu Zico, recém-aposentado, para uma entrevista que abordou não só a carreira, mas também a ideia de criação de ligas e a estrutura do futebol brasileiro. Em outro momento, já no fim da década, técnicos e dirigentes passaram pela roda para falar de temas como calendário, direitos de transmissão e violência nos estádios.

    Essas conversas, exibidas em horário nobre e em canal aberto, ajudavam a construir no torcedor a noção de que o jogo de domingo era só a ponta de um iceberg. Atrás de cada partida havia:

  • decisões políticas;
  • gestão financeira;
  • planejamento (ou falta dele) de categorias de base;
  • conflitos de interesse e disputas por poder.
  • Para uma geração inteira, ouvir um dirigente ser confrontado por jornalistas em rede pública era uma experiência formadora. Era como ter acesso, pela primeira vez, aos bastidores que antes ficavam escondidos em atas de reunião e conversas de corredor.

    Além disso, a Cultura dedicou espaço a modalidades como vôlei, basquete e atletismo em reportagens especiais e coberturas pontuais. Em ano olímpico, a programação ganhava recortes históricos, lembrando campanhas passadas, medalhas improváveis e heróis pouco conhecidos do grande público.

    Esse olhar plural reforçava uma mensagem importante: o esporte não se resumia ao futebol profissional masculino de elite. Para muitos jovens, foi a primeira oportunidade de ver, na TV aberta, o esporte como campo de estudo, trabalho e cidadania, e não só como entretenimento.

    Infantil e juventude: quando até os programas para crianças formavam torcedor

    Mesmo quando o tema principal não era o esporte, a TV Cultura dos anos 90 deixava rastros que ajudavam a construir a identidade do torcedor. Programas infantis e juvenis como “X-Tudo”, “Castelo Rá-Tim-Bum” e “Mundo da Lua” eventualmente abordavam futebol, jogos de rua, regras e fair play.

    Era comum ver quadros e episódios que:

  • falavam de brincadeiras de bola na rua e em quadras de bairro;
  • tratavam a diferença entre competir e “ganhar a qualquer custo”;
  • mostravam meninas jogando bola em pé de igualdade com meninos;
  • ensinavam regras básicas de esportes olímpicos em linguagem simples.
  • Em um episódio de “Castelo Rá-Tim-Bum”, por exemplo, uma partida de futebol vira pretexto para discutir convivência, respeito às regras e frustração com a derrota. Para a criança que assistia aquilo à tarde e, algumas horas depois, via uma mesa-redonda discutindo o 3-5-2 na seleção, havia um fio condutor: o esporte como espaço de aprendizado, e não só de paixão cega.

    Essa abordagem também ajudou a naturalizar a presença feminina no universo esportivo. Ao mostrar meninas jogando, torcendo e comentando, esses programas plantavam, ainda que de forma discreta, uma semente de inclusão em uma época em que o futebol feminino ainda era pouco visível na TV aberta.

    Uma geração marcada pela análise, não só pela paixão

    Olhar para a TV Cultura dos anos 90 é perceber por que tantos torcedores daquela época hoje se interessam por estatísticas, análises táticas e bastidores. Antes de “xG”, de plataformas de dados e de vídeos de análise no YouTube, já existia uma cultura – sem trocadilho – de olhar para o jogo com mais curiosidade.

    O que esses programas deixaram como herança?

  • O hábito de ouvir quem pensa diferente, em vez de apenas torcer pelo próprio argumento.
  • A ideia de que resultado sem contexto não explica um time, um jogador ou um técnico.
  • A noção de que categorias de base são tão importantes quanto o profissional.
  • O reconhecimento de que política e gestão influenciam diretamente o campo.
  • Muitos dos jornalistas, comentaristas e até analistas de desempenho da nova geração cresceram com a TV ligada na Cultura. Em entrevistas recentes, é comum ouvir referências a debates do Cartão Verde, a transmissões da Copinha ou a entrevistas no Roda Viva como momentos formadores.

    Um comentarista tático da nova geração resumiu isso, em entrevista a um podcast, ao lembrar das noites em frente à TV: “Enquanto outras emissoras brigavam por quem gritava mais alto, a Cultura me ensinou que o jogo era um grande quebra-cabeça. E que o papel do torcedor podia ser tentar montá-lo, não só reclamar da peça que faltou”.

    Hoje, com streaming, redes sociais e dezenas de canais esportivos, o torcedor tem à disposição uma quantidade quase infinita de conteúdo. Mas é difícil encontrar, em TV aberta, o mesmo tipo de combinação que a Cultura oferecia nos anos 90: debate qualificado, cobertura da base, entrevistas em profundidade e, por trás de tudo, a preocupação em formar, não apenas entreter.

    Relembrar aqueles programas não é só nostalgia. É também um lembrete de que o jeito de falar de esporte influencia diretamente o jeito de torcer. Uma geração inteira aprendeu, com a TV Cultura, que é possível amar um clube, vibrar com a seleção e, ao mesmo tempo, cobrar transparência, exigir projeto e querer entender o jogo em todas as suas camadas.

    Para quem viveu aquela época, cada vinheta, cada noite de Cartão Verde e cada jogo de Copinha transmitido em janeiro está guardado na memória. E, em muitos casos, foi ali, na tela da Cultura dos anos 90, que nasceu não só um torcedor, mas também um observador atentos dos bastidores, um curioso por tática e, em diversos casos, um profissional do próprio esporte.

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