A cidade grande entra na TV infantil
Quando Castelo Rá-Tim-Bum estreou na TV Cultura em 9 de maio de 1994, o Brasil vivia um momento de grandes transformações urbanas. São Paulo já superava 9 milhões de habitantes, o trânsito começava a dominar o noticiário e expressões como “engarrafamento”, “rodízio” e “linha de metrô” faziam parte do vocabulário diário. Nesse cenário, uma personagem em especial trouxe para a TV infantil algo até então pouco explorado: a linguagem da cidade grande.
Penélope, a repórter de cabelo rosa-choque que andava de carro conversível e falava diretamente do “mundão lá fora”, funcionava como a ponte entre o universo mágico do Castelo e a realidade urbana de uma metrópole como São Paulo. Em plena faixa infantil, crianças eram apresentadas – de forma lúdica – ao trânsito, à poluição, ao noticiário, à pressa e às contradições da vida urbana.
Mais do que uma “repórter engraçada”, Penélope ajudou a construir, para uma geração inteira, o vocabulário da cidade grande. Como isso aconteceu? E por que essa personagem segue tão atual, três décadas depois?
Quem era Penélope no universo de Castelo Rá-Tim-Bum?
Interpretada pela atriz Angela Dip, Penélope aparecia em blocos que imitavam entradas ao vivo de telejornais. Com seu microfone, seu carro conversível amarelo e seu figurino colorido, ela surgia “direto da cidade grande” para trazer notícias e curiosidades ao público do Castelo – e, por extensão, às crianças em casa.
Ao contrário de outros personagens mais “atemporais” do programa, Penélope era fortemente marcada pelo contexto dos anos 90:
Ela não morava no Castelo, não fazia parte da lógica mágica daquele espaço. Vinha de fora, de um “lá fora” que tinha carros, prédios, fumaça e buzina. Era, dentro da estrutura narrativa do programa, a personificação da cidade grande batendo à porta daquele universo lúdico.
A linguagem da cidade grande: gírias, trânsito e telejornalismo
Penélope se destacava não apenas pelo visual, mas pela maneira de falar. O texto da personagem trazia, com cuidado, elementos da linguagem urbana contemporânea, sem perder o tom educativo que marcava toda a produção da TV Cultura.
Três aspectos se destacam quando analisamos a participação de Penélope na construção dessa “linguagem de cidade grande” para o público infantil:
1. Vocabulário urbano contextualizado
Termos ligados ao cotidiano da metrópole apareciam com frequência em seus quadros. Palavras e expressões como:
não surgiam jogadas ao acaso. Em geral, vinham acompanhadas de explicações simples ou de situações visuais que ajudavam a criança a entender o significado. Essa escolha de roteiro aproximava o vocabulário técnico do dia a dia urbano da compreensão infantil.
2. Ritmo e formato de telejornal
Penélope imitava o formato dos telejornais reais: fazia “entradas ao vivo”, chamava fatos como “notícias”, reagia a acontecimentos da cidade. Isso introduzia, de forma lúdica, a lógica do jornalismo no imaginário das crianças:
Para um público que estava começando a ter contato com o Jornal Nacional na sala de estar, Penélope funcionava como uma espécie de “tradução” infantil do que era um repórter na televisão.
3. Humor como filtro da complexidade urbana
A cidade grande, nos noticiários, costumava aparecer como espaço de violência, caos e problemas. Em Castelo Rá-Tim-Bum, a perspectiva era outra. Penélope trazia:
O humor era o filtro que permitia tratar de temas potencialmente pesados – acidentes, enchentes, barulho, correria – sem traumatisar o público. Em vez de terror urbano, a cidade era apresentada como um espaço que precisava de atenção, cuidado e cidadania.
Jornalismo infantil antes e depois de Penélope
A presença de Penélope em Castelo Rá-Tim-Bum não surgiu num vácuo. A TV Cultura já vinha, desde os anos 80, experimentando formas de tratar informação com linguagem infantil. Mas os quadros da repórter de cabelo rosa representam um ponto de virada na maneira de integrar cidade, jornalismo e infância.
Antes: informação mais escolar, menos urbana
Em programas anteriores, como Vila Sésamo (na versão brasileira dos anos 70) ou quadros educativos dos anos 80, havia muita informação sobre números, letras, higiene e convivência. A cidade aparecia, mas geralmente como cenário abstrato: ruas, casas, comércio de bairro.
A metrópole – com trânsito, prédios altos, transportes coletivos complexos e ritmo acelerado – quase não era tematizada. Quando surgia, era pela via do perigo: “cuidado para atravessar a rua”, “não fale com estranhos”.
Depois: a cidade vira personagem
Com Penélope, a cidade grande deixa de ser apenas pano de fundo e vira assunto. Não é coincidência que, nos anos seguintes, outros programas infantis passem a incorporar quadros com repórteres mirins, notícias adaptadas ou esquetes que imitam telejornais.
Programas como Cocoricó (também da Cultura, posteriormente) e produções de outros canais começam a trazer, com mais frequência, temas como:
A figura da repórter urbana ajudou a legitimar a ideia de que criança também é cidadã e tem direito a entender – no seu próprio tempo e linguagem – o lugar onde vive.
Bastidores: como se construía a “cidade” de Penélope
Embora a maior parte da ação de Castelo Rá-Tim-Bum se passasse em cenários fechados, nos estúdios da TV Cultura em São Paulo, a equipe de produção se preocupava em dar à personagem Penélope um entorno reconhecível como “cidade grande”. Isso passava por três camadas principais: cenário, som e texto.
Cenário: pistas visuais de metrópole
O cenário onde Penélope aparecia costumava incluir elementos estereotipados, mas eficientes, para sinalizar o espaço urbano:
O famoso carro conversível amarelo da personagem, embora pouco realista para a rotina paulistana média, funcionava como ícone: ele dizia imediatamente à criança que Penélope se movia pela cidade, que circulava, que “via” coisas diferentes.
Som: buzinas, sirenes e ruído urbano
Outro recurso importante era a paisagem sonora. Ruídos de fundo, ainda que discretos, ajudavam a reforçar a ideia de metrópole:
Essa construção sonora era organizada para não atrapalhar a compreensão do texto, mas estava quase sempre presente, criando no imaginário infantil o contraste entre o silêncio (relativo) do Castelo e o barulho constante da cidade grande.
Texto: equilíbrio entre informação e ficção
Os roteiristas precisavam fazer um exercício delicado: inserir fatos cotidianos da vida urbana sem transformar o quadro num noticiário literal. Por isso, muitas das “reportagens” de Penélope mesclavam:
Esse equilíbrio permitia que a criança se reconhecesse nas imagens da cidade, mas continuasse envolvida pela fantasia. A metrópole aparecia como lugar de problemas e desafios, mas também de descobertas e encontros.
A cidade como personagem educativa
Um dos legados mais interessantes de Penélope é a forma como ela ajudou a transformar a cidade grande em tema pedagógico. Em vez de apenas entreter, os quadros abriam margem para conversas em casa e na escola.
Professores e pais passaram a usar elementos do programa para discutir questões concretas com as crianças. Entre os temas que emergiam a partir das aparições de Penélope, destacavam-se:
Na prática, o personagem ajudava a criança a entender que a cidade não era apenas um cenário gigantesco e caótico, mas um lugar sobre o qual ela também tinha responsabilidades e no qual podia atuar de forma mais consciente.
Memória afetiva e atualidade da personagem
Trinta anos depois da estreia de Castelo Rá-Tim-Bum, Penélope segue presente na memória afetiva de quem viveu a infância nos anos 90. Não é raro que adultos de hoje, ao enfrentarem um engarrafamento em São Paulo, lembrem da forma leve como a personagem falava de trânsito no programa.
Curiosamente, boa parte dos temas abordados por Penélope continua atual – e, em alguns casos, mais urgente:
Se nos anos 90 a presença de uma repórter de cabelo rosa falando da cidade grande parecia uma forma criativa de aproximar a criança de um tema distante, hoje a distância é menor: crianças cada vez mais vivem, de fato, em cidades densas, conectadas e cheias de estímulos.
O que Penélope ensina para a TV infantil de hoje
Num momento em que plataformas digitais disputam a atenção do público mirim, a experiência de Castelo Rá-Tim-Bum e de personagens como Penélope ainda oferece algumas pistas importantes para quem pensa TV e conteúdo infantil no século XXI.
1. Não subestimar o repertório da criança urbana
Meninos e meninas que crescem em grandes cidades lidam cedo com temas como transporte coletivo, trânsito, barulho, pressa, violência simbólica e desigualdade espacial. Ignorar isso em nome de um “mundo cor-de-rosa” totalmente isolado da realidade pode gerar um hiato entre o que a criança vê na tela e o que ela vive na rua.
Penélope mostra que é possível reconhecer esse repertório sem perda de ludicidade, usando humor, fantasia e mediação cuidadosa.
2. Integrar cidadania ao entretenimento
Mais do que “fazer rir”, os quadros da repórter da cidade grande traziam oportunidades constantes de discutir:
Num mundo marcado por desinformação e excesso de estímulos, personagens que funcionem como “guias” da realidade urbana podem ser decisivos na formação do senso crítico das novas gerações.
3. Explorar formatos híbridos
A mistura de telejornal, ficção, esquete cômica e bloco educativo que dava vida à Penélope antecipa, de certa forma, os formatos híbridos que hoje dominam plataformas como YouTube e TikTok. Crianças se acostumaram a ver pessoas “falando com a câmera”, trazendo notícias, curiosidades, listas, reações.
O que na década de 90 parecia inovação de linguagem – uma repórter estilizada, em cenário colorido, trazendo notícias da cidade – hoje pode inspirar adaptações para o ambiente digital, mantendo a essência: aproximar a realidade urbana da criança, com responsabilidade, informação e afeto.
Memórias de um Brasil urbano em construção
Olhar para Penélope, três décadas depois, é também revisitar um Brasil em fase de transição. Aquele país que saía dos anos 80 ainda marcado pela inflação alta e pelo crescimento desordenado das cidades, e entrava nos anos 90 com discussões mais intensas sobre cidadania, meio ambiente urbano e direitos da criança.
Castelo Rá-Tim-Bum se tornou um marco não apenas pela qualidade técnica e pelo carinho do público, mas também pela inteligência com que incorporou temas da vida real ao seu universo fantástico. No meio desse equilíbrio, a repórter da cidade grande teve um papel discreto, mas fundamental: ensinar, sem didatismo pesado, que o “mundão lá fora” também era assunto de criança.
Ao recuperar essas memórias, não se trata apenas de nostalgia televisiva. É um convite a pensar como a TV – e hoje, as múltiplas telas – podem continuar ajudando meninos e meninas a decifrar a cidade que os cerca. Entre buzinas, prédios, ônibus e metrôs, ainda há muito espaço para novas “Penélopes” traduzirem, com humor e responsabilidade, a linguagem da cidade grande para as próximas gerações.
