Memorias do esporte

Pele e a construção do mito: as maiores façanhas do rei dentro e fora dos gramados

Pele e a construção do mito: as maiores façanhas do rei dentro e fora dos gramados

Pele e a construção do mito: as maiores façanhas do rei dentro e fora dos gramados

Quando Edson Arantes do Nascimento entrou em campo pela primeira vez como profissional, em 7 de setembro de 1956, pelo Santos, ninguém no Estádio Ulrico Mursa, em Santos, podia imaginar que estava começando ali a construção de um dos maiores mitos da história do esporte. O garoto de 15 anos marcou um gol na vitória por 7 a 1 sobre o Corinthians de Santo André e recebeu no vestiário um aviso de Waldemar de Brito, o ex-jogador que o havia levado ao clube: “Esse menino vai ser o melhor do mundo”. Com o tempo, a frase deixou de ser profecia para virar constatação histórica.

Mas como se constrói um mito? No caso de Pelé, a resposta passa por façanhas concretas, estatísticas impressionantes, decisões de bastidor e um contexto histórico em que o futebol ganhava contornos globais. Dentro e fora dos gramados, o “Rei” foi, ao mesmo tempo, protagonista e produto de uma era em que o esporte começava a ser espetáculo planetário.

Do menino de Três Corações ao símbolo do Santos de todos os tempos

Nascido em 23 de outubro de 1940, em Três Corações (MG), Pelé cresceu em Bauru (SP), driblando dificuldades financeiras e jogando com bola de meia nas ruas de terra. O pai, Dondinho, ex-atacante, foi a primeira referência. A segunda, determinante, foi Waldemar de Brito, que o levou para um teste no Santos em 1956 com uma frase que ficaria famosa: “Estou trazendo o melhor jogador de futebol do mundo”.

No Santos, a ascensão foi meteórica. Em 1957, aos 16 anos, Pelé já era titular e terminou o Campeonato Paulista como artilheiro, com 36 gols. Era o presságio de uma era de domínio. Entre 1956 e 1974, foram 1.091 gols em 1.116 partidas pelo clube, de acordo com os registros oficiais do Santos FC – números que ajudam a entender por que o time daquela época ficou conhecido como “o maior espetáculo da Terra”.

Entre as façanhas mais emblemáticas com a camisa santista, algumas se destacam na construção do mito:

Esses números, porém, ganham outro peso quando cruzados com relatos da época. Rivellino, rival nos clássicos entre Corinthians e Santos, resumiu: “Quando o Pelé estava em campo, você já começava perdendo de 1 a 0. Era psicológico”. A aura em torno do jogador já começava a ultrapassar o racional, um passo fundamental para qualquer figura mítica.

1958: o adolescente que virou Rei em uma Copa do Mundo

A Copa do Mundo de 1958, na Suécia, é o primeiro grande marco internacional da construção do mito Pelé. Aos 17 anos, ele iniciou o torneio lesionado, ficou fora das duas primeiras partidas, e correu o risco de nem ser inscrito na delegação final. Foi a insistência de Vicente Feola, técnico da Seleção, e o aval do departamento médico que o mantiveram na lista.

Reestreou contra a União Soviética, na fase de grupos, ajudando a Seleção a garantir a classificação. Nas quartas de final, contra o País de Gales, marcou o gol solitário na vitória por 1 a 0. Na semifinal, diante da França de Just Fontaine, anotou um hat-trick na goleada por 5 a 2. E na final, contra a Suécia, anfitriã, voltou a balançar as redes duas vezes, na vitória por 5 a 2.

Ao todo, foram 6 gols em 4 partidas naquele Mundial. Mais do que isso: foram gols cinematográficos. O famoso tento em que ele domina no peito, dá um chapéu no zagueiro e finaliza de primeira é até hoje um dos frames clássicos das Copas. Logo após o título, o jornal francês “L’Équipe” estampou: “Un Roi est né”. O apelido não era mais um adorno, era coroação.

É nesse momento que Pelé deixa de ser apenas um grande jogador e passa a encarnar um papel simbólico: o Brasil, país ainda à procura de afirmação internacional, de repente tinha um “Rei” reconhecido mundialmente, num esporte que começava a ser visto como linguagem universal.

1962, 1966 e 1970: a ambiguidade do herói e o Mundial da consagração

Em 1962, no Chile, Pelé se machucou ainda na fase de grupos, contra a Tchecoslováquia. O Brasil seria campeão com Garrincha como grande protagonista, o que alimentou a curiosidade histórica: e se Pelé tivesse jogado o torneio inteiro? O mito também se constrói a partir do que não aconteceu.

Já em 1966, na Inglaterra, veio o momento mais duro da trajetória em Copas. Repetidamente caçado em campo, especialmente pelos defensores de Portugal e Bulgária, Pelé deixou o torneio lesionado, e o Brasil foi eliminado ainda na fase de grupos. Anos depois, ele declararia: “Achei que aquela tinha sido minha última Copa do Mundo”. O herói não era invencível – mas a narrativa do mito ganhava uma camada de vulnerabilidade que, paradoxalmente, o tornaria ainda mais humano e interessante.

O retorno em 1970, no México, encerraria o ciclo em Copas da forma mais cinematográfica possível. Aos 29 anos, mais experiente e jogando em uma Seleção repleta de craques (Jairzinho, Tostão, Rivelino, Gérson, Carlos Alberto), Pelé foi o cérebro e, muitas vezes, o coração daquele time.

Algumas das cenas mais icônicas da história do futebol foram gravadas naquele torneio:

Ao erguer a Taça Jules Rimet pela terceira vez, o Brasil se tornou tricampeão mundial, e Pelé, o único jogador a vencer três Copas do Mundo como atleta (1958, 1962 e 1970). A imagem dele carregado nos ombros pelos mexicanos, com um sombrero na cabeça, sintetizou o mito em escala planetária.

Os mil gols e a relação com o povo: o Santos que virou atração global

Se as Copas consolidaram o mito diante do mundo, o dia a dia com o Santos o aproximou definitivamente do povo brasileiro. O gol de número 1.000, marcado em 19 de novembro de 1969, no Maracanã lotado, contra o Vasco, de pênalti, é um dos episódios mais simbólicos dessa relação.

Ao converter a cobrança, Pelé foi cercado por repórteres e, em vez de um discurso pessoal, fez um apelo social: “Pensem nas crianças, pensem nos pobres”. Aquela frase, transmitida ao vivo, ajudou a moldar a imagem pública do jogador como alguém consciente de sua influência além do esporte.

Entre 1960 e 1974, o Santos fez dezenas de excursões internacionais, da Europa à África, passando pela Ásia e Américas. Em muitos países, a presença de Pelé era o principal atrativo. Há relatos históricos, por exemplo, de uma trégua em plena guerra civil nigeriana, em 1969, para que o Santos pudesse jogar amistosos em Lagos e Benin City. Embora os detalhes e a amplitude da “trégua” sejam debatidos por historiadores, o episódio alimentou o imaginário em torno do poder do mito: um jogador capaz de parar uma guerra, nem que fosse por 90 minutos.

Para os adversários, enfrentá-lo era, ao mesmo tempo, desafio e privilégio. O zagueiro italiano Tarcisio Burgnich, que o marcou na final de 1970, resumiu depois: “Eu dizia a mim mesmo que ele era de carne e osso, como eu. Mas estava enganado”. Frases assim vão ajudando a construir uma narrativa que ultrapassa as quatro linhas.

O salto para os Estados Unidos e o papel de embaixador do futebol

Em 1975, quando muitos achavam que Pelé encerraria a carreira apenas no Santos, veio uma decisão que mudaria também a história do futebol nos Estados Unidos. Aos 34 anos, o Rei assinou com o New York Cosmos, da NASL (North American Soccer League), numa operação que envolveu governo brasileiro, empresas multinacionais e forte interesse político.

Pelé não foi apenas um jogador que cruzou o Atlântico; foi um projeto. A ideia era clara: usar a imagem do maior nome da modalidade para popularizar o “soccer” no maior mercado de entretenimento do mundo.

Dentro de campo, os números foram respeitáveis: 107 jogos, 64 gols e o título da NASL em 1977. Fora de campo, o impacto foi gigantesco:

Ao se aposentar definitivamente em 1º de outubro de 1977, em um amistoso entre Santos e Cosmos no Giants Stadium, Pelé atuou um tempo por cada equipe. Antes do jogo, pegou o microfone e pediu, em inglês: “Love, love, love”. Não era apenas despedida; era uma passagem de bastão simbólica entre eras e continentes.

Da figura esportiva ao ícone global: cinema, publicidade e diplomacia informal

A construção do mito Pelé fora dos gramados passa também pela maneira como sua imagem foi usada – e como ele mesmo a administrou.

Desde os anos 1960, o Rei tornou-se presença constante em campanhas publicitárias, algo ainda relativamente novo para atletas do período. Comerciais de refrigerante, eletrodomésticos, artigos esportivos e, mais tarde, empresas internacionais de diversos segmentos ajudaram a solidificar sua imagem como marca global.

O cinema também teve papel importante. Em 1981, Pelé participou do filme “Victory” (“Fuga para a Vitória”, no Brasil), ao lado de astros como Sylvester Stallone e Michael Caine. No longa, que mistura futebol e Segunda Guerra Mundial, ele interpreta um soldado-jogador, reforçando o arquétipo do herói que usa o esporte como forma de resistência e redenção.

Ao longo das décadas, Pelé assumiu ainda funções de “embaixador”: da ONU, da Unesco, de campanhas em prol da infância, da paz e do esporte educacional. Essa atuação reforçou a ideia de que o mito não se limitava ao gol e ao drible, mas também à capacidade de representar valores positivos – muitas vezes de forma até idealizada – para diferentes gerações.

As controvérsias, as comparações e a permanência do mito

Nenhum mito se constrói apenas com louros. A trajetória de Pelé também tem áreas de sombra e debates intensos. As estatísticas de 1.281 gols em 1.363 jogos, por exemplo, incluem amistosos, jogos festivos e partidas contra combinados locais, algo que frequentemente é usado em comparações com craques de outras eras. Ao mesmo tempo, é preciso considerar que, na época, amistosos internacionais tinham peso maior, muitas vezes disputados com seriedade equiparável a jogos oficiais.

Outra frente de discussão é sua postura pública em momentos politicamente delicados do Brasil, especialmente durante a ditadura militar (1964–1985). Críticos apontam que Pelé foi “neutro em excesso”, evitando confrontos diretos, enquanto defensores lembram que o contexto de repressão era duro e que poucos atletas se posicionavam abertamente. O próprio Rei, em entrevistas posteriores, chegou a admitir que talvez pudesse ter feito mais em algumas situações.

As inevitáveis comparações com Maradona, Messi, Cristiano Ronaldo e outros gigantes do futebol fazem parte desse processo de reinterpretação constante do mito. Cada novo craque recoloca a pergunta: quem foi o maior? Do ponto de vista histórico, porém, a grandeza de Pelé não depende da resposta definitiva a essa questão – até porque o futebol mudou radicalmente em termos táticos, físicos e midiáticos.

O que permanece inalterado são alguns fatos objetivos:

Franz Beckenbauer, campeão mundial pela Alemanha em 1974, sintetizou: “Pelé é o maior. Ponto. Quem vier depois joga em outra categoria”. Ao mesmo tempo em que a frase é taxativa, ela revela algo importante: o mito Pelé ocupa um espaço à parte na memória coletiva do futebol.

O legado que segue vivo

Pelé morreu em 29 de dezembro de 2022, aos 82 anos, em São Paulo, após complicações de um câncer de cólon. As homenagens se espalharam do Brasil ao Japão, da Fifa às pequenas ligas amadoras. Estádios exibiram seu rosto em telões, jogadores comemoraram gols apontando para o céu e autoridades de vários países enviaram mensagens oficiais.

Mas o mito não está restrito às homenagens institucionais. Ele vive:

Afinal, o que faz de Pelé um mito não é apenas o acervo de gols, títulos e dribles, mas a forma como sua história se entrelaça com a própria trajetória do futebol brasileiro e mundial. Do garoto de Bauru ao Rei do Cosmos, do gol 1.000 ao tricampeonato, da bola de meia ao palco de Copas, sua biografia funciona quase como um espelho da transformação do esporte em fenômeno global.

No fim, quando alguém pergunta se Pelé foi mesmo o maior de todos, talvez a resposta mais precisa esteja naquilo que muitos adversários sentiram ao entrar em campo contra ele: a sensação de que, por 90 minutos, dividiam o gramado com alguém que parecia jogar um jogo ligeiramente diferente, num nível acima. É nesse desnível – técnico, simbólico e histórico – que se constrói o mito. E é por isso que, décadas depois de pendurar as chuteiras, Pelé segue sendo, para muita gente, simplesmente o Rei.

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