Em 2010, quando o jovem atacante do Santos de 18 anos começou a driblar meio time adversário em jogos de domingo à tarde no Brasileirão, muita gente se perguntou: “Estamos vendo nascer o próximo grande ídolo do futebol brasileiro?”. Mais de uma década depois, com passagens marcantes por Santos, Barcelona, PSG, seleção brasileira e, mais recentemente, Al-Hilal, Neymar não é apenas um jogador de números extraordinários. Ele se transformou em um fenômeno cultural que ultrapassa as quatro linhas: influencia comportamento, linguagem, moda, música, redes sociais e até a forma como o brasileiro discute futebol.
Mas como, exatamente, Neymar redefiniu a cultura esportiva brasileira? O que está por trás dessa mistura de gênio da bola, celebridade global, personagem controverso e protagonista permanente das conversas de bar, dos programas esportivos e das timelines?
Da Vila Belmiro ao mundo: a linha do tempo de um ídolo midiático
A história começa oficialmente em 7 de março de 2009, quando Neymar estreia profissionalmente pelo Santos, aos 17 anos, em partida contra o Oeste, pelo Campeonato Paulista. Em poucos meses, ele já era tema de capas de jornal, debates em mesas-redondas e vídeos virais no YouTube. A combinação de dribles curtos, arrancadas em velocidade e gols de tudo quanto é tipo fez ressurgir um vocabulário que parecia esquecido: “moleque atrevido”, “joga sorrindo”, “futebol arte”.
Entre 2010 e 2013, o Brasil assistiu à consolidação do craque na Vila Belmiro:
- Campeão da Copa do Brasil em 2010, com 11 gols marcados no torneio;
- Campeão da Libertadores em 2011, sendo protagonista aos 19 anos;
- Autora do gol que lhe rendeu o prêmio Puskás da FIFA em 2011, contra o Flamengo;
- Bicampeão paulista (2010 e 2011), liderando o Santos de Ganso, Robinho e companhia.
Em 2013, chega o momento que muda sua relação com a cultura esportiva mundial: a transferência para o Barcelona, anunciada em maio. Se no Santos Neymar já era ídolo nacional, no Barça ele vira produto global. Dividir vestiário e ataque com Lionel Messi e, depois, com Luis Suárez, dá origem ao trio MSN, um dos mais famosos da história recente do futebol europeu. O futebol brasileiro volta a ter um protagonista semanal na Liga dos Campeões, com gols decisivos em mata-matas e final de 2015.
Em 2017, a ida para o Paris Saint-Germain, por 222 milhões de euros, rompe o mercado e o imaginário: é a maior transferência da história do futebol. Mais do que uma mudança de clube, é um reposicionamento de marca. Neymar deixa de ser “apenas” o craque da companhia e passa a ser o centro de um projeto esportivo e comercial em Paris, com forte componente midiático, parceria com grifes e presença constante em eventos de moda e música.
Em 2023, a transferência para o Al-Hilal, da Arábia Saudita, insere um novo capítulo: o ídolo brasileiro agora também é um dos rostos do movimento de globalização agressiva do futebol saudita. A grave lesão no joelho esquerdo, em outubro de 2023, interrompe o início dessa trajetória, mas não diminui o peso simbólico da escolha: Neymar, mais uma vez, está no centro do debate sobre dinheiro, carreira, legado e prioridades no futebol moderno.
Um ídolo explicado em números
Neymar não é só narrativa; é estatística pesada. Na seleção brasileira principal, ultrapassou a marca histórica de Pelé em jogos oficiais, tornando-se o maior artilheiro da história da amarelinha em partidas reconhecidas pela FIFA, com mais de 79 gols. Para uma geração, a imagem de “Brasil em campo” se confunde com o camisa 10 cabelo descolorido, faixas, tatuagens e dribles improváveis.
Em clubes, o impacto ofensivo também impressiona:
- No Santos, mais de 130 gols como profissional, com média superior a um gol a cada dois jogos em suas melhores temporadas;
- No Barcelona, ultrapassou a marca de 100 gols, participando diretamente (gols + assistências) de mais de um gol por partida em algumas temporadas;
- No PSG, tornou-se um dos maiores artilheiros da história do clube em poucos anos, com mais de 100 gols em competições oficiais.
Além disso, há os títulos: Libertadores, Champions League, Mundial de Clubes, diversos campeonatos nacionais, Copa das Confederações (2013) e o ouro olímpico em 2016, no Maracanã. Esse último, inclusive, tem forte peso simbólico: o Brasil, traumatizado por anos de frustrações olímpicas no futebol masculino, encontra em Neymar o protagonista da campanha que finalmente traz o ouro. O pênalti decisivo convertido contra a Alemanha e a sequência, ajoelhado, chorando, se tornaram uma das imagens mais icônicas da história recente do esporte brasileiro.
Os números ajudam a explicar por que Neymar ocupa, há mais de uma década, o centro das discussões esportivas no país. Mas eles não bastam para entender por que ele se tornou, ao mesmo tempo, ídolo, vilão, meme, referência de estilo e protagonista de debates morais e geracionais.
Estética, improviso e o “jeito Neymar” de jogar
O futebol brasileiro sempre viveu uma tensão entre o “resultado” e o “espetáculo”. Com Neymar, essa tensão ganhou um novo capítulo. Em campo, ele representa uma continuidade da tradição do drible, do improviso e da irreverência. Ao mesmo tempo, incorporou elementos do futebol europeu moderno: alta intensidade, ocupação de espaços, participação coletiva na fase ofensiva.
Seu estilo de jogo gerou uma espécie de “estética Neymar”:
- Dribles curtos e rápidos em espaços reduzidos, muitas vezes arriscando giros, lambretas e canetas em zonas do campo onde a maioria preferiria o passe simples;
- Busca constante do um contra um, obrigando defesas a fazer coberturas duplas ou triplas;
- Capacidade de receber por dentro, como meia armador, ou aberto pela esquerda, atraindo marcação e abrindo corredor para laterais e meio-campistas.
Esse estilo reacendeu discussões antigas: até que ponto o drible “humilha” o adversário? Quantos toques são “eficientes” e quando viram “firula”? O próprio Neymar, em diferentes entrevistas ao longo da carreira, sempre reforçou a ideia de que driblar é sua identidade, algo que não pretende abandonar para agradar críticos.
Para muitos jovens, principalmente nas periferias urbanas, Neymar se tornou um modelo de como jogar – e não apenas de como vencer. O menino que ousa na quadra, arrisca a lambreta no society ou tenta a bicicleta no campinho de terra muitas vezes está, conscientemente ou não, imitando lances que viu de Neymar em vídeos de highlights. Em um país em que o futebol é também expressão cultural, isso tem peso enorme.
Redes sociais, cultura pop e o atleta como marca
Se Romário e Ronaldo eram personagens midiáticos à moda antiga, com entrevistas, comerciais de TV e manchetes em jornais, Neymar é o primeiro grande ídolo brasileiro plenamente moldado na era das redes sociais. Ele surgiu profissionalmente junto com a popularização massiva do Twitter, do Facebook e, depois, do Instagram e TikTok. Isso muda tudo.
Neymar não é apenas notícia; é produtor de conteúdo. Compartilha rotina, bastidores, amizades com cantores e influenciadores, viagens, festas, celebrações de gol com referências a músicas do momento. A fronteira entre vida privada e pública ficou mais tênue – por escolha dele e também pela pressão do mercado esportivo e publicitário.
Alguns elementos resumem esse fenômeno:
- Presença constante em videoclipes, lives e conteúdos com artistas do funk, do sertanejo e do trap;
- Parcerias com grandes marcas de material esportivo, moda e tecnologia, muitas vezes com campanhas centradas na sua história de ascensão “da rua ao mundo”;
- Uso competente (e às vezes polêmico) das redes para se posicionar após críticas, publicando desabafos, mensagens enigmáticas ou bastidores de concentrações.
No Brasil, isso ajudou a redefinir a figura do atleta de elite. O jogador de futebol deixou de ser visto apenas como profissional focado em treinos e jogos para ser entendido também como celebridade multitela, que precisa negociar a agenda entre compromissos esportivos, comerciais e sociais. Muita gente se pergunta: “Ele é mais popstar ou mais jogador?”. Na prática, Neymar é justamente a fusão dos dois papéis – e essa fusão diz muito sobre o esportista da era digital.
Amado, criticado, cobrado: o ídolo em debate permanente
Nenhum grande ídolo brasileiro escapou da crítica. Com Neymar, porém, o nível de escrutínio é inédito, potencializado por redes sociais, programas esportivos diários e noticiários 24 horas. Lesões, decisões de carreira, vida noturna, postura com arbitragem, quedas em campo, tudo vira pauta.
As Copas do Mundo amplificaram esse olhar. Em 2014, a lesão na coluna nas quartas de final contra a Colômbia fez o país abraçar Neymar como vítima de um golpe duro. Em 2018, as quedas exageradas e as reações em campo viraram assunto global, com memes, montagens e críticas à sua postura. Em 2022, a eliminação nas quartas contra a Croácia trouxe, de novo, o debate sobre protagonismo e responsabilidade.
Esse ambiente produziu algumas tensões claras na cultura esportiva brasileira:
- Parte da torcida vê Neymar como o maior craque pós-Ronaldo Fenômeno, vítima de cobrança desproporcional;
- Outra parte o enxerga como símbolo de uma geração que não entregou a Copa do Mundo e vive “mais de marketing do que de bola”;
- A imprensa se divide entre a análise puramente esportiva (onde seus números o sustentam entre os melhores da era) e a avaliação comportamental.
O resultado é uma presença constante em debates sobre “o que é ser ídolo”. Precisa ser exemplo moral? Basta jogar bola em alto nível? A vida privada importa? Neymar virou laboratório vivo dessas questões, e o torcedor brasileiro, por tabela, foi obrigado a refletir sobre seus próprios critérios de admiração e cobrança.
Neymar como espelho de uma nova geração de torcedores
Há um dado geracional importante: muitos dos adolescentes e jovens adultos de hoje nunca viram Romário em seu auge, acompanharam Ronaldo mais pelo YouTube do que ao vivo e só ouviram histórias de Zico, Sócrates ou Falcão pela boca de pais e avós. Para essa geração, o primeiro grande ídolo “em tempo real” foi Neymar.
Isso tem impacto direto em como se consome esporte no Brasil:
- Mais gente acompanha ligas europeias, especialmente quando Neymar está em campo, do que o Brasileirão em alguns casos;
- Torcedores brasileiros passaram a se declarar “parciais” por Barcelona ou PSG por causa de Neymar, antes de qualquer identificação com a cidade ou o clube;
- O debate de bar foi para o Twitter, para o WhatsApp e para o TikTok, com lances de Neymar sendo recortados, remixados e discutidos em tempo real.
Ao mesmo tempo, ele também é espelho dos conflitos dessa geração: pressão mental, necessidade de aprovação constante, exposição permanente e haterismo nas redes. Quando Neymar fala sobre estar cansado de ser alvo, sobre cobranças e falta de respeito, muita gente se identifica – mesmo que em escalas completamente diferentes.
No vestiário, seu papel sempre foi, segundo relatos de companheiros, o de um jogador que gosta do ambiente leve, da resenha, da música alta, do videogame. Essa figura ajuda a quebrar a ideia do atleta sisudo e inacessível, mas também alimenta a crítica de quem espera uma postura mais “séria” de um líder técnico.
E agora? Legado em construção e futuro em aberto
Com a grave lesão de 2023 e a sequência de problemas físicos acumulados desde a Copa de 2014, cresce a sensação de que já vimos o melhor Neymar em termos físicos e atléticos. Ainda assim, o debate sobre seu legado está longe de um veredito definitivo.
Em campo, ele já ocupa lugar garantido na prateleira dos maiores talentos que o Brasil produziu, com números que o colocam ao lado de lendas. Fora de campo, seu impacto cultural é inquestionável: ajudou a redefinir a figura do atleta-celebridade, a estética do drible na era das redes, o consumo de futebol europeu pelo brasileiro e o tipo de discussão pública que se faz em torno de um ídolo.
Resta uma pergunta que ecoa em todas as conversas: uma Copa do Mundo mudaria tudo? É provável que sim, especialmente no imaginário popular, que ainda toma o título mundial como selo definitivo de grandeza. Mas, do ponto de vista cultural, o estrago – ou melhor, a transformação – já está feito. Neymar já moldou, para o bem e para o mal, a forma como o Brasil olha para seus heróis esportivos.
Talvez, no futuro, ao contar a história da cultura esportiva brasileira do início do século XXI, seja inevitável passar por alguns marcos: o garoto magro estreando pelo Santos em 2009; o craque decisivo na final da Libertadores em 2011; o protagonista do ouro olímpico em 2016; o jogador que virou meme mundial em 2018; o homem que, entre dribles, festas, gols e lesões, ensinou o Brasil a conviver com um ídolo hiperexposto em tempo real.
Entre críticas e aplausos, uma coisa é certa: Neymar não é apenas um capítulo da história do futebol brasileiro. Ele é um espelho da sociedade que o criou, o consumiu, o cobrou e, de um jeito ou de outro, continua a se enxergar nele toda vez que a bola rola e o número 10 aparece na tela.
