Na memória afetiva de quem cresceu no Brasil dos anos 90, poucas imagens são tão marcantes quanto a da bruxa de cabelos desgrenhados, roupas pesadas e voz grave que habitava uma torre repleta de livros e objetos curiosos. Era Morgana, a “bruxa velha” do Castelo Rá-Tim-Bum, personagem que ajudou a moldar a imaginação de uma geração que, mais tarde, encheria arquibancadas, quadras e campos de futebol pelo país.
Num blog dedicado às memórias do esporte, pode parecer estranho falar de uma série infantil da TV Cultura. Mas basta lembrar quantos ídolos nascidos nos anos 80 e 90 cresceram entre partidas de futebol na rua e tardes em frente à TV, alternando gols de Romário, Ayrton Senna nos domingos de manhã e, em outro horário, a magia do Castelo. A infância esportiva dessa geração foi também uma infância televisiva – e Morgana foi parte importante desse cenário.
A TV infantil dos anos 90 e o surgimento do Castelo
Castelo Rá-Tim-Bum estreou em 9 de maio de 1994, na TV Cultura, em São Paulo. Criado por Cao Hamburger e Flávio de Souza, com direção de arte de Mira Haar e cenários de Clóvis Bueno, o programa somou ao todo 90 episódios produzidos ao longo da década. Em 1999, já era consenso entre críticos de TV que se tratava de uma das produções infantis mais bem-sucedidas da história da televisão brasileira, combinando educação, fantasia e humor.
Numa época em que a TV aberta ainda organizava a rotina das crianças – geralmente dividida entre escola de manhã e televisão à tarde – o Castelo se tornou ponto fixo na agenda. Dados de audiência da época, divulgados pela própria emissora em relatórios institucionais, indicavam que, em São Paulo, o programa chegava a rivalizar com produções de canais comerciais em determinados horários, algo raro para uma TV pública.
Em meio a Nino, Dr. Victor, Biba, Pedro, Zequinha, Penélope e tantos personagens, Morgana ocupava um lugar distinto: não era criança, não era exatamente “do bem” nos moldes tradicionais dos contos de fadas, mas também não era vilã. Era uma figura de fronteira – entre o passado e o presente, entre o medo e o riso, entre o mundo adulto e o infantil.
Quem era Morgana no universo do Castelo
Interpretada pela atriz Rosi Campos, Morgana era apresentada como a tataravó bruxa de Nino. Vivia no alto da torre do Castelo, cercada de livros, frascos, caldeirões e relíquias, como uma guardiã da memória da família Stradivarius. Sua primeira grande característica era o tempo: tudo nela parecia antigo – das roupas escuras às histórias que contava.
Ao contrário das bruxas clássicas dos desenhos animados, que existiam apenas para assustar ou atrapalhar o herói, Morgana tinha uma função mais complexa. Ela:
- Orientava Nino em momentos de dúvida;
- Relembrava episódios do passado do Castelo;
- Servia como ponte com um mundo de tradições, lendas e canções;
- Usava a magia tanto para resolver problemas quanto para ensiná-los a encará-los.
Seus feitiços e frases marcantes – muitos fãs lembram de bordões, ambos cômicos e misteriosos – ajudavam a criar uma atmosfera em que o “medo gostoso” fazia parte da experiência infantil. Era o medo controlado, mediado pela tela da TV, que preparava a criança para desafios de outro tipo, inclusive aqueles vividos no esporte: perder, errar, se frustrar, cair e levantar.
Visualmente, a personagem também fugia do clichê da bruxa de desenho animado. O figurino carregava referências de teatro e circo, com camadas de tecidos escuros, lenços e acessórios exagerados. Essa construção visual reforçava a ideia de uma bruxa não pasteurizada, quase saída de narrativas orais de interior – próximas da cultura popular brasileira.
Infância, magia e a formação de uma geração
Em plena década de 90, a infância no Brasil misturava rua e sofá. De manhã, muitas crianças brincavam de bola, apostavam corridas na calçada, imitavam dribles que viam em jogos transmitidos na TV. À tarde, voltavam para casa, ligavam a TV Cultura e mergulhavam em um universo em que quadras e campos davam lugar a calabouços e bibliotecas encantadas.
Essa alternância entre corpo em movimento e imaginação estimulada é um dado importante quando pensamos na geração que iria ocupar o esporte brasileiro nas décadas seguintes. Vários atletas, treinadores e jornalistas esportivos nascidos entre 1980 e 1990 já relataram, em entrevistas, que cresceram acompanhando tanto os heróis dos gramados quanto a turma do Castelo. Era comum ouvir: “brincava de bola na rua e corria para não perder o episódio”.
Morgana, em particular, cumpria um papel simbólico interessante nesse contexto. Ela:
- Mostrava que a sabedoria vinha com o tempo – algo que, no esporte, se traduz na paciência para evoluir, treinar e amadurecer;
- Apresentava a ideia de que erros e trapalhadas fazem parte do processo, inclusive quando se tenta “acertar o feitiço”;
- Ensinava, indiretamente, a lidar com frustrações e medos, fundamentais para qualquer criança que se arrisca em competições escolares ou peladas de bairro;
- Valorizava a curiosidade e a pergunta, nunca dando tudo pronto – algo que dialoga com o espírito de quem estuda táticas, regras e histórias do esporte.
Quantas crianças que sonhavam em ser jogadoras de vôlei, de basquete ou de futebol não cresceram acreditando, de certa forma, que havia um pouco de “magia” envolvida em acertar aquele saque, aquela bandeja, aquele chute de fora da área? A presença de uma bruxa simpática e irônica na TV infantil reforçava a sensação de que o impossível poderia ser trabalhado – na fantasia, mas também no treino.
Bastidores: criação da personagem e impacto na cultura pop
Nos bastidores do Castelo Rá-Tim-Bum, a criação de Morgana dialogava com duas linhas de força. De um lado, a tradição das bruxas da literatura infantil e do folclore europeu. De outro, a vontade dos criadores de adaptar essa figura a um contexto educacional brasileiro, sem cair em estereótipos simplistas.
Roteiristas como Flávio de Souza buscavam, em cada episódio, equilibrar o uso da magia com uma mensagem concreta. Em vez de resolver tudo de forma milagrosa, os feitiços de Morgana frequentemente criavam novas situações, obrigando as crianças a raciocinar. Era a “mágica” usada como ferramenta dramática e pedagógica, não como atalho.
Rosi Campos, por sua vez, trouxe uma construção de personagem que misturava teatralidade e intimidade. Sua voz rouca, o jeito resmungão e, ao mesmo tempo, afetuoso, davam a Morgana a dimensão de uma “velha conhecida” do público – quase uma avó excêntrica. Em entrevistas ao longo dos anos, a atriz costuma lembrar o carinho de adultos que, ao reencontrá-la, falam como se estivessem revendo alguém da família.
Com o tempo, a personagem se transformou em ícone da cultura pop brasileira. Em listas de “personagens mais marcantes da TV infantil” publicadas por veículos especializados em televisão e entretenimento, Morgana passa a figurar ao lado de nomes como Fofão, Xuxa, Angélica e os personagens da TV Manchete. A diferença é que ela representava não o apresentador ou a apresentadora “estrela do programa”, mas uma coadjuvante que roubava a cena pela força do personagem.
Nas redes sociais, a partir dos anos 2010, não foram poucos os memes e montagens que reutilizaram a imagem da bruxa do Castelo para comentar política, futebol, moda e cotidiano. É um sinal de como aquele arquétipo foi incorporado ao imaginário coletivo de quem viveu a infância naquele período.
Do Castelo aos estádios: fãs que cresceram
Quando analisamos a geração de atletas e torcedores que hoje ocupa arquibancadas e campos, encontramos um dado curioso: muitos dos que hoje são líderes de torcida, narradores, comentaristas, treinadores de base e mesmo jogadores profissionais nasceram justamente entre 1985 e 1995, auge da exibição do Castelo Rá-Tim-Bum na TV aberta.
Em diferentes reportagens de cultura e esporte, é comum encontrar depoimentos genéricos que se repetem: a TV ligada na hora do jogo do time do coração e, em outro horário, o compromisso com os programas infantis educativos. Essa mistura de referências formou um repertório singular: de um lado, o grito de gol; de outro, a trilha de abertura do Castelo e as cenas na torre de Morgana.
Para muitos torcedores, a figura da bruxa virou símbolo da própria infância. O adulto que hoje viaja para ver seu time em outra cidade, organiza caravana de torcida ou leva o filho pela primeira vez ao estádio, provavelmente foi a mesma criança que, décadas atrás, se sentava diante da TV para ver “qual seria o feitiço do dia”. Essa memória compartilhada cria uma linguagem geracional que aparece até nas arquibancadas, em faixas, fantasias e referências culturais.
E, de certa forma, há algo de “morgânico” – para usar um neologismo – na rotina de quem vive o esporte: a importância da experiência acumulada, a paciência com processos, a aceitação de que nem todo “feitiço” (treino, jogada ensaiada, contratação) dá certo de primeira. A bruxa da torre, que parecia tão distante do mundo dos gramados, ofereceu, sem querer, lições aproveitadas muito além do Castelo.
Turismo e memória: onde revisitar Morgana hoje
Para quem sente saudade da torre de Morgana e quer transformar essa nostalgia em experiência concreta, algumas opções surgiram nos últimos anos, especialmente em São Paulo, cidade que abrigou as gravações originais do programa.
Entre 2014 e 2017, o Museu da Imagem e do Som (MIS-SP) sediou exposições dedicadas ao Castelo Rá-Tim-Bum, reconstruindo cenários icônicos, incluindo a torre da bruxa. As mostras bateram recordes de público, com filas que se formavam horas antes da abertura. Embora essas exposições tenham sido temporárias, elas mostraram a força turística do universo criado nos anos 90.
Hoje, quem deseja revisitar esse imaginário pode ficar atento a:
- Exposições itinerantes: ao longo dos últimos anos, diferentes cidades brasileiras receberam mostras temáticas do Castelo, com reprodução de partes do cenário e objetos de cena. Vale acompanhar a programação cultural de centros culturais, shoppings e museus nas capitais;
- Programação da TV Cultura: reprises e especiais, em datas comemorativas, costumam resgatar trechos clássicos com Morgana em versões remasterizadas;
- Plataformas de streaming: em diversos momentos da última década, a série esteve disponível em serviços sob demanda. A disponibilidade varia conforme contratos, então a recomendação é checar periodicamente os catálogos;
- Acervo digital: a própria TV Cultura mantém, em seu portal e em canais oficiais de vídeo, trechos, entrevistas e materiais de bastidores, que ajudam a matar a saudade da personagem;
- Eventos temáticos: encontros de fãs, convenções de cultura pop e eventos de nostalgia dos anos 80 e 90 frequentemente incluem painéis ou estandes dedicados ao Castelo.
Para o leitor de Memórias do Esporte, acostumado a planejar viagens para ver um jogo histórico, visitar um estádio centenário ou conhecer um museu esportivo, inserir uma parada “mágica” no roteiro pode ser um complemento curioso. Em uma ida a São Paulo para acompanhar uma partida no Morumbi, Allianz Parque ou Neo Química Arena, por exemplo, é perfeitamente possível encaixar visitas a museus que, de tempos em tempos, resgatam o Castelo em suas programações.
O encanto de uma bruxa que não era vilã
O que torna Morgana tão especial, a ponto de merecer espaço em um blog que, em essência, fala de esporte, ídolos, grandes momentos e turismo esportivo? A resposta passa por algo que vai além da TV: memória coletiva.
A personagem condensou, em sua figura, muitas das tensões e descobertas da infância dos anos 90:
- Era “assustadora”, mas protegida pela mediação da TV – como os desafios do esporte são difíceis, mas limitados pelas regras do jogo;
- Era “velha”, mas falava diretamente com as crianças – como treinadores experientes que conseguem dialogar com atletas muito jovens;
- Errava feitiços, tentava de novo, ria de si mesma – como qualquer pessoa que se dispõe a aprender uma nova modalidade, um novo gesto técnico, um novo papel em equipe;
- Valorizava histórias – exatamente como fazemos quando relembramos finais dramáticas, viradas improváveis e carreiras inspiradoras no esporte.
Num momento em que o consumo esportivo é cada vez mais fragmentado, com jogos e clipes vistos em telas de celular, vale lembrar que a geração que hoje lota estádios e maratonas cresceu em outro ritmo: com tardes inteiras disponíveis para se perder em um castelo encantado e depois levar esse espírito de imaginação para a rua, para a quadra, para o campinho.
Morgana, da sua torre, não ensinou apenas feitiços. Ensinou também que tradição, memória e histórias bem contadas têm força para atravessar o tempo – assim como as grandes narrativas do esporte. Talvez seja por isso que, quando um torcedor dos anos 90 leva seu filho ao estádio pela primeira vez, não esteja apenas transmitindo o amor por um time, mas também um jeito de viver a infância em que uma bruxa de TV, um gol no domingo e uma brincadeira na rua faziam parte do mesmo universo mágico.
E você, que aprendeu a sonhar com o impossível vendo gols de bicicleta e feitiços na torre, já parou para pensar quanto da sua relação com o esporte nasceu ali, entre o barulho da bola quicando no quintal e o eco da voz grave de Morgana chamando de algum lugar do alto do Castelo?