Em boa parte do século XX, carnaval e futebol caminharam lado a lado nas grandes cidades brasileiras. Muito além das marchinhas sobre times e jogadores, havia um elo visual forte entre essas duas paixões nacionais: as máscaras de carnaval com rostos de craques, técnicos, árbitros e até cartolas, que migravam dos bailes e blocos para as arquibancadas. Em determinados domingos, o estádio parecia um salão de clube: papelão, purpurina, serpentinas e, no meio de tudo isso, um gol aos 45 do segundo tempo.
Quando a arquibancada virou salão de baile
Para entender o papel das máscaras de carnaval antigas no futebol, é preciso voltar a um Brasil em que rádio e jornal impresso eram as principais fontes de informação esportiva. Nos anos 1940 e 1950, o torcedor chegava ao estádio com uma experiência muito mais “festiva” do que hoje: bandeiras enormes, papel picado, charangas e, em época de fevereiro, fantasias improvisadas.
Em muitas cidades, especialmente no Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Belo Horizonte e Salvador, o calendário do futebol se chocava diretamente com o do carnaval. Era comum ter rodada de campeonato ou amistoso importante em pleno fim de semana de folia. Resultado? O público ia diretamente do baile para o estádio – ou do estádio para o baile – sem trocar de roupa. Máscara incluída.
Arquivos fotográficos de jornais e revistas esportivas da época mostram arquibancadas coloridas, com torcedores fantasiados de:
Nesse contexto, a arquibancada assumia uma função dupla: torcer e desfilar. Em alguns estádios, dirigentes e cronistas chegavam a usar a expressão “desfile de domingo” para falar da variedade de trajes e máscaras que se via na geral e nas sociais.
As primeiras máscaras de ídolos: do papelão ao mito
As máscaras de carnaval com rostos de jogadores começam a ganhar força à medida que os craques se transformam em grandes personagens nacionais. Nos anos 1950 e 1960, jogadores que brilhavam por seleção e clubes passavam a ser reconhecidos na rua, não apenas pelo nome, mas pela fisionomia: o corte de cabelo, o bigode, o sorriso, o jeito de correr.
Empresas especializadas em artigos de carnaval começaram a testar, em tiragens pequenas, máscaras de personalidades populares: artistas de rádio, humoristas, políticos e, logo depois, jogadores de futebol. Em um primeiro momento, a caricatura era genérica – “o centroavante”, “o goleiro” – mas com traços que lembravam nomes da época.
Com o tempo, começaram a aparecer máscaras com “apelidos” estampados ou com detalhes que não deixavam dúvidas sobre a referência. Em época de Copa do Mundo, então, o fenômeno se multiplicava. Torcedores compravam máscaras de seus ídolos para ir ao baile na sexta-feira e, no domingo, reaproveitavam o acessório na arquibancada, criando uma espécie de “clonagem” dos craques. De repente, o estádio tinha dez, quinze, vinte “camisas 10” sorrindo das gerais.
Essa apropriação tinha um componente simbólico forte: vestir o rosto do ídolo era assumir, por algumas horas, o protagonismo que o torcedor sonhava ter dentro de campo. Era também um jeito de homenagear, de declarar publicamente: “é esse cara que me representa”.
Carnaval, Copa e televisão: a era das multidões mascaradas
Se o rádio ajudou a criar os primeiros ídolos nacionais, foi a televisão que transformou o rosto do jogador em marca reconhecível por todo o país. Dos anos 1960 em diante, as transmissões de jogos e os programas esportivos fizeram com que a fisionomia dos craques entrasse diariamente na sala de estar do torcedor.
Esse movimento coincidiu com a industrialização maior dos produtos de carnaval. Máscaras passaram a ser produzidas em série, em papel mais resistente ou plástico fino, com elástico atrás, vendidas em bancas de jornal, armarinhos e camelôs.
Carnavais que coincidiam com grandes campanhas da seleção ou de clubes em torneios internacionais impulsionavam a moda. Torcedores passaram a encomendar máscaras personalizadas, com fotos recortadas de jornais coladas em papelão, reforçadas com fita adesiva. Era o “faça você mesmo” do torcedor-artesão.
Na arquibancada, o impacto visual era imediato. Em alguns jogos, setores inteiros combinavam o uso de um mesmo tipo de máscara. Quem olhava das cabines de imprensa via blocos de torcedores com o mesmo rosto. Alguns cronistas esportivos, em suas colunas, registraram esse fenômeno como um “carnaval permanente” no futebol brasileiro em determinados meses do ano.
A máscara deixava de ser apenas um adereço de festa e se tornava também ferramenta de identidade de grupo, quase um uniforme suplementar das torcidas.
Os vilões também viram máscara
Nem só de ídolos vivia o comércio de máscaras. Árbitros, dirigentes polêmicos e até técnicos considerados “retranqueiros” ou “azarados” também ganhavam versões caricatas. Aqui, o tom mudava: saía a homenagem, entrava a sátira.
Torcedores vestiam a máscara do juiz acusado de errar contra o seu time e, em protesto bem-humorado, combinavam vaias e coreografias na arquibancada, como se fosse um bloco de carnaval temático. Era uma forma de crítica, mas com a linguagem típica da festa: exagero, riso e fantasia.
Essa tradição dialogava diretamente com a cultura dos carros alegóricos e dos enredos que ironizam figuras do poder nos desfiles de escola de samba. Tal como no Sambódromo, o estádio também servia como espaço em que o torcedor, por algumas horas, podia “brincar” com as figuras de autoridade, invertendo papéis e expondo suas frustrações.
Bastidores da fantasia: quem fazia essas máscaras?
Por trás dessas máscaras que apareciam nas arquibancadas havia uma cadeia de produção pouco documentada, mas fundamental para entender a ligação entre carnaval e futebol.
Na base estavam pequenos ateliês familiares de bairros populares, muitos ligados diretamente a escolas de samba, cordões ou blocos. Nas semanas que antecediam o carnaval, a prioridade era a produção para bailes e desfiles. Mas, percebendo a demanda crescente nos estádios, esses mesmos ateliês começaram a adaptar moldes de personagens genéricos (palhaço, rei, diabo) para rostos de jogadores e árbitros.
Em paralelo, artesãos independentes produziam peças únicas ou de tiragem reduzida, vendidas em torno dos estádios em dias de jogo. Com pouco material – cartolina, tinta guache, fio de nylon – conseguiam resultados impressionantes. Muitos desses trabalhos eram quase retratos, baseados em fotos de jornal.
Essa economia informal, que ligava:
acabou deixando um legado hoje disputado por colecionadores. Máscaras antigas bem conservadas, especialmente as de grandes ídolos ou de campanhas históricas, tornaram-se peças raras e valiosas no mercado de memória esportiva.
Máscaras, identidade e memória afetiva
Por que essas máscaras de carnaval ligadas ao futebol despertam tanta nostalgia? A resposta passa por um componente geracional. Muitos torcedores que iam ao estádio nos anos 1960, 1970 e 1980 cresceram associando três experiências simultâneas:
A máscara sintetizava tudo isso. Ela não era apenas um adereço engraçado, mas um marcador de época. Ao rever uma foto em que está de máscara, o torcedor volta, de imediato, a um tipo de estádio que praticamente desapareceu: com alambrados, arquibancadas de cimento bruto, vendedores de picolé passando na geral e bandeirões descendo durante o hino.
Não é por acaso que, em entrevistas e depoimentos, muitos torcedores mais velhos usem justamente essas imagens – a da fantasia, da máscara, do confete – para distinguir “o futebol de antigamente” do futebol de hoje. A máscara se torna, em certo sentido, um cartão-postal de uma era em que o espetáculo nas arquibancadas era tão importante quanto o que acontecia dentro de campo.
Regresso discreto: quando a nostalgia encontra o marketing
Nas últimas duas décadas, o ambiente dos estádios mudou bastante: cadeiras numeradas, câmeras em alta definição, maior controle de acesso, restrição a determinados materiais nas arquibancadas. Com isso, o carnaval informal das gerais perdeu espaço.
Ainda assim, as máscaras não desapareceram completamente. Em partidas decisivas, em estreias de grandes reforços ou em comemorações de títulos, volta e meia surgem torcedores com máscaras de jogadores, geralmente em modelo fotográfico plastificado, produzido em gráfica rápida ou impresso em casa.
Clubes e patrocinadores também passaram a se apropriar da ideia em ações de marketing: distribuição de máscaras em jogos específicos, campanhas temáticas em períodos de carnaval, ativações com torcedores e mascotes oficiais.
Ao mesmo tempo, lojas de artigos esportivos e brechós especializados em memorabilia passaram a exibir, com cada vez mais destaque, máscaras antigas de carnaval ligadas ao futebol. Elas aparecem em vitrines ao lado de camisas, flâmulas, ingressos e revistas de época, compondo um mosaico da cultura de arquibancada que vai além do gol e do grito de campeão.
Um roteiro para quem quer reviver esse carnaval nas arquibancadas
Para o leitor que gosta de unir turismo, história e futebol, as máscaras antigas podem ser o ponto de partida para uma espécie de “rota da fantasia” pelos acervos esportivos do país. Alguns estádios e museus dedicados ao futebol, ou à cultura popular, mantêm peças ligadas ao carnaval entre suas coleções.
Em visitas a centros de memória de clubes, é comum encontrar:
Para aproveitar melhor esse tipo de passeio, vale algumas orientações práticas:
Além dos espaços esportivos, museus de carnaval, de cultura popular e de memória urbana também costumam guardar registros dessa mistura entre arquibancada e folia. Nesses ambientes, a máscara de jogador aparece ao lado de outras representações de figuras populares: radialistas, sambistas, humoristas e personagens anônimos do cotidiano brasileiro.
Dicas para quem quer colecionar máscaras antigas de futebol
Para muitos aficionados por memória esportiva, as máscaras de carnaval tornaram-se objetos de desejo. Não se trata apenas de acumular peças, mas de reconstruir, por meio delas, uma linha do tempo da relação entre futebol, festa e cultura de massa.
Para quem pensa em começar uma pequena coleção, alguns pontos merecem atenção:
Com o tempo, uma coleção bem cuidada pode se transformar em material para pequenas exposições, encontros de torcedores ou até projetos de pesquisa sobre a cultura de arquibancada e o carnaval.
Quando o rosto do ídolo vira espelho do torcedor
Olhar hoje para uma máscara de carnaval antiga com o rosto de um craque é mais do que olhar para um objeto curioso. É revisitar uma época em que o torcedor ocupava os estádios não apenas como espectador, mas como protagonista visual do espetáculo. Ao vestir o rosto do ídolo, ele também colocava para fora suas fantasias, seus desejos e sua própria visão de pertencimento.
Entre confetes, serpentinas e gritos de gol, a máscara fazia uma ponte entre dois mundos que o Brasil aprendeu a viver intensamente: o da festa de fevereiro e o do drama de noventa minutos. E, na memória de quem viveu aquela arquibancada em clima de desfile, essa ponte continua firme, como se o bloco ainda estivesse em campo, esperando apenas o próximo apito inicial para entrar em formação.