Fita cassete antiga e esportes: como o áudio guardou gols históricos e narradores lendários

Fita cassete antiga e esportes: como o áudio guardou gols históricos e narradores lendários

Antes da internet, antes mesmo do DVD e do streaming, muita memória do esporte brasileiro foi guardada num objeto hoje quase esquecido: a fita cassete. Pequenas, baratas e fáceis de gravar, elas transformaram torcedores em arquivistas caseiros, rádios em verdadeiras bibliotecas sonoras e gols em registros que atravessaram décadas apenas pelo som. Se o vídeo eternizou imagens, o cassete foi o guardião das vozes: narradores, comentaristas, jingles de emissoras e o grito rouco de quem acompanhava pelo rádio.

Neste artigo, revisitamos a época em que o torcedor apertava “REC” para guardar uma final de campeonato, entendemos como as rádios usavam as fitas no dia a dia e mostramos por que, ainda hoje, muita pesquisa sobre a história do esporte depende desses pequenos retângulos de plástico e fita magnética.

A era em que o som era tudo: rádio, estádio e sala de estar

Até os anos 1970, o rádio era o grande protagonista da cobertura esportiva no Brasil. Mesmo com a popularização da TV a partir da Copa de 1970, uma rotina se manteve: televisão ligada, som no “mudo” e rádio alto, acompanhando o jogo com a narração preferida. Em muitos lares, nem TV havia — mas rádio, quase sempre.

Nesse contexto, a fita cassete chega ao Brasil com força justamente na década de 1970. Fabricantes como Philips e Gradiente oferecem gravadores de mesa e portáteis, capazes de registrar qualquer transmissão em tempo real. O torcedor, que antes era apenas ouvinte, vira também produtor do próprio acervo.

Em 1977, a venda de gravadores e rádios com tape deck embutido cresce junto com a popularização dos campeonatos transmitidos ao vivo. Na virada dos anos 1980, já é comum encontrar famílias que mantêm “fitas do jogo” em casa, lado a lado com as que guardam músicas gravadas da programação musical das rádios.

O torcedor que virava arquivista: rituais, truques e manias

A lógica era simples, mas exigia disciplina. Em dias de jogo decisivo, o torcedor preparava o equipamento:

  • Rebobinar a fita até o começo;
  • Conferir se o lado A ou B tinha espaço suficiente;
  • Testar o microfone ou a entrada de áudio do rádio-gravador;
  • Silenciar a casa no momento do “vai começar o jogo!”.

Se hoje reclamamos de travadas em streaming, nos anos 1980 o terror era outro: a fita acabar antes do apito final. Quantos gols históricos foram narrados com a gravação interrompida no meio por falta de espaço no cassete de 60 minutos?

Entre as histórias recorrentes em entrevistas com torcedores colecionadores, uma se repete: a preocupação com os pênaltis. Em disputas decisivas, como semifinais de estaduais ou mata-matas do Brasileirão, muitos colocavam uma fita nova só para a série de penalidades, com medo de perder justamente o chute derradeiro.

Alguns desenvolviam técnicas quase profissionais. Havia quem gravasse apenas o segundo tempo, por “economia de fita”, apostando que é ali que tudo acontece. Outros preparavam duas fitas: uma para registrar o jogo inteiro, outra só para os “melhores momentos”, acionando o REC apenas em escanteios, faltas perigosas e contra-ataques.

Gols eternizados no áudio: quando a fita era o único arquivo

A importância dessas gravações caseiras fica clara quando olhamos para partidas dos anos 1970 e 1980. Muitos jogos não tiveram registro integral em vídeo, principalmente em campeonatos estaduais, torneios regionais e rodadas menos badaladas do Brasileirão. Em vários casos, o que sobrou foi apenas o áudio.

Torcedores e pesquisadores relatam, por exemplo, fitas com:

  • Jogos do Campeonato Paulista do início dos anos 1980, com narrações completas de clássicos que não foram televisados integralmente;
  • Partidas decisivas de torneios regionais do Norte e Nordeste, preservadas apenas porque um torcedor, diante do rádio, decidiu gravar;
  • Gols de craques em fase ainda pouco documentada em vídeo, como partidas menores de Zico, Sócrates, Reinaldo ou Roberto Dinamite em estádios de interior.

Em muitos acervos pessoais, uma categoria aparece com destaque: finais de campeonato. Decisões de estaduais e do Brasileirão nos anos 1970 e 1980 costumam existir em mais de uma fonte de áudio, pois várias rádios transmitiam e muitos torcedores gravavam simultaneamente.

Para pesquisadores e documentaristas, essas fitas não são apenas um registro do gol, mas também da reação coletiva: o rugido da arquibancada, o comentarista se atropelando nas palavras, o repórter de campo tentando localizar o autor do passe decisivo. São camadas de memória que a imagem, muitas vezes limpa demais, não carrega sozinha.

Narradores lendários: a voz que a fita não deixava morrer

Se o cassete guardou gols, sobretudo guardou vozes. Nomes como Fiori Gigliotti, Osmar Santos, José Silvério, Jorge Curi, Oduvaldo Cozzi e tantos outros atravessaram a era analógica em grande parte graças às fitas que rodavam em estúdios e casas de torcedores.

Fiori Gigliotti, famoso pela frase “Abrem-se as cortinas e começa o espetáculo!”, é um exemplo emblemático. Suas narrações de jogos da Seleção nos anos 1970 e 1980, muitas vezes ouvidas em rádios de pilha no interior do Brasil, ficaram registradas em cassetes que ainda hoje circulam digitalizados. Em várias delas, é possível ouvir sua despedida clássica: “Crepúsculo de jogo em tal estádio…”. Sem a fita, esse estilo talvez estivesse limitado à memória oral dos mais velhos.

Osmar Santos, o “Pai da Matéria”, teve grande parte dos seus bordões eternizados em áudio: “Ripa na chulipa e pimba na gorduchinha!”, “O tempo passa, torcida brasileira!”. Radialistas que trabalharam com ele relatam que, nas emissoras, fitas com trechos de narrações memoráveis eram usadas para treinamento de novos locutores, que ouviam e analisavam pausas, ritmo e entonação.

José Silvério, com seu estilo de descrição minuciosa, também aparece em inúmeras gravações caseiras de partidas dos anos 1980 e 1990. Alguns torcedores recortavam, literalmente, o trecho do gol favorito, rebobinavam e ouviam em sequência, transformando o momento decisivo em trilha sonora particular.

Os bastidores do rádio: como as rádios usavam a fita cassete

Não eram só os torcedores que dependiam das fitas. As emissoras também. Antes dos arquivos digitais, a rotina de uma rádio esportiva passava por pilhas e pilhas de cassetes rotulados à mão.

Nos bastidores, as fitas tinham funções bem definidas:

  • Revisão de transmissão: jogos importantes eram gravados integralmente para que narradores e comentaristas pudessem, no dia seguinte, ouvir o próprio trabalho e corrigir vícios;
  • Vinhetas e chamadas: bordões, trechos de gols e frases de impacto eram recortados em fitas menores e usados como vinhetas ao longo da programação;
  • Arquivo histórico: finais de campeonato, grandes clássicos e estreias de craques eram guardados separadamente, muitas vezes em armários trancados, como patrimônio da emissora;
  • Distribuição interna: antes da era do e-mail, repórteres que cobriam times em outras cidades às vezes levavam fitas de volta à sede com entrevistas gravadas, para serem reproduzidas em programas da semana.

Radialistas que trabalharam nos anos 1980 contam que não era raro faltar fita. Em dias de rodada cheia, a solução era gravar por cima de programas antigos menos importantes. Foi assim que muitos registros se perderam. Em outros casos, o técnico de som separava, quase por instinto, aquilo que “não podia ir pro lixo” — um gol em final, uma entrevista rara, uma narração especialmente inspirada.

De lembrança a documento histórico: quando o colecionador encontra o pesquisador

Com a popularização da internet e da digitalização, as fitas cassete deixaram de ser apenas lembranças pessoais para ganhar novo status: o de fonte primária de pesquisa. Universidades, museus do esporte e documentaristas passaram a buscar coleções particulares para recuperar momentos pouco documentados.

Em muitos casos, pesquisadores descobriram que:

  • a única gravação conhecida de determinado gol de campeonato regional estava numa fita guardada por um torcedor há 30 anos;
  • versões inteiras de partidas que pareciam perdidas existiam fragmentadas em várias fitas de diferentes colecionadores, permitindo montagens quase completas do áudio final;
  • entrevistas de pós-jogo com jogadores já falecidos sobreviviam apenas em pequenos trechos de programas de rádio gravados em casa.

Para além do Brasil, o fenômeno é semelhante em outros países da América do Sul, como Argentina e Uruguai, onde rádios esportivas também tiveram tradição fortíssima. Mas o caso brasileiro se destaca pelo volume de emissoras, a extensão territorial e a cultura do bordão, que estimulou o hábito de “guardar” a voz preferida do torcedor.

Do chiado ao MP3: como as fitas estão sendo salvas hoje

Se você tem mais de 35 ou 40 anos, talvez ainda haja algum estojo de fita cassete esquecido em um armário. O problema é que a fita magnética envelhece: resseca, perde partículas, mofa. Chega um ponto em que aquele áudio do gol de 1985 pode simplesmente desaparecer.

Por isso, museus, rádios e colecionadores têm corrido contra o tempo para digitalizar o que ainda existe. O processo é tecnicamente simples, mas delicado:

  • limpar, quando possível, o mecanismo do cassete;
  • reproduzir a fita em um aparelho bem regulado, evitando “mascar” a fita;
  • capturar o som via computador, em formato WAV ou MP3 de alta qualidade;
  • aplicar, se necessário, redução de ruído e correção de volume, sem distorcer a narração original;
  • identificar, catalogar e descrever o que há em cada arquivo (jogo, data, narrador, rádio).

Alguns projetos independentes já reúnem centenas de horas de narrações clássicas, disponíveis em plataformas digitais ou em acervos de pesquisa. Em muitos casos, o crédito ao torcedor que preservou a fita há décadas é explícito — afinal, sem ele, aquele registro teria se perdido.

Para quem ainda tem fitas guardadas em casa, o recado é direto: ou se digitaliza agora, ou o risco de perder tudo em curto prazo é grande. E, escondido naquele plástico amarelecido, pode haver algo mais valioso do que parece.

Quando o áudio vira atração: museus, estádios e turismo esportivo

A experiência sonora também chegou ao turismo esportivo. Em visitas a estádios e museus dedicados ao futebol, é cada vez mais comum encontrar estações de áudio que recriam narradores e gols históricos.

O Museu do Futebol, em São Paulo, instalado no antigo Pacaembu, é um exemplo emblemático. Em uma de suas salas mais conhecidas, o visitante é cercado por narrações de diferentes épocas, vindas de todas as direções. Não é raro ver torcedores de olhos fechados, apenas ouvindo, em silêncio, o gol que talvez tenham escutado criança, pelo rádio da cozinha.

Alguns clubes também passaram a incorporar áudios históricos em tours de estádio. Em roteiros guiados, o visitante escuta, por exemplo, a narração original de um gol de título reproduzida nos alto-falantes, enquanto observa o gramado. Nessas experiências, a tecnologia é moderna, mas muitos arquivos vieram diretamente de antigas fitas cassete, restauradas e convertidas em digital.

Para o torcedor-viajante, vale a pena ficar atento: ao visitar um museu ou fazer um tour, pergunte se há estações de áudio, se o acervo de narrações está disponível on-line ou se o clube aceita doações de registros antigos. Em tempos de streaming, a “descoberta” de uma fita antiga pode virar, anos depois, uma atração turística.

Por que ainda vale falar de fitas num mundo de streaming?

Pode parecer anacrônico falar de cassete quando qualquer gol entra no ar em segundos nas redes sociais. Mas a fita cassete, na história do esporte, representa algo que o digital nem sempre garante: o ponto de vista do torcedor no momento em que o fato aconteceu.

Quando alguém gravava uma partida em 1982, não havia a menor certeza de que aquele jogo seria importante. Justamente por isso, muita coisa banal foi registrada — e é nessas “banalidades” que pesquisadores encontram hoje o contexto: jingles de rádio, comentários sobre bastidores, humor da época, modos de se falar de futebol que mudaram radicalmente com o passar dos anos.

Além disso, o áudio puro — sem imagem — obriga quem ouve a reconstruir a cena mentalmente. É um exercício de imaginação que marcou gerações: crianças que aprenderam a “ver” o jogo pelos olhos do narrador, adultos que associam a voz de um locutor a um título específico, famílias que lembram da final de campeonato não tanto pela escalação, mas pelo chiado do rádio de pilha no meio da sala.

As fitas cassete são, em última instância, cápsulas de tempo sonoras. Em cada uma delas, há mais do que gols e gritos. Há modos de torcer, linguagens, emoções e silêncios. Preservá-las, hoje, é preservar não só a história do esporte, mas também a forma como o esporte foi sentido por milhões de pessoas espalhadas pelo país.

Da próxima vez que você ouvir a narração de um gol antigo circulando em rede social, com aquele leve chiado de fundo e um narrador gritando a plenos pulmões, vale se perguntar: será que esse áudio não nasceu, um dia, gravado em uma fita cassete esquecida ao lado de um rádio na sala de alguém?