Memorias do esporte

Boneco brasil: a evolução dos brinquedos de seleção e ídolos do futebol

Boneco brasil: a evolução dos brinquedos de seleção e ídolos do futebol

Boneco brasil: a evolução dos brinquedos de seleção e ídolos do futebol

Antes de existir álbum de figurinhas com realidade aumentada, chuteira de fibra de carbono e rede social para acompanhar ídolo em tempo real, a relação da criança brasileira com a Seleção passava por um objeto simples: o boneco. De plástico duro, de borracha, de pano, articulado ou estático, ele era a forma mais concreta de “trazer para casa” Pelé, Zico, Romário, Ronaldo, Marta, Neymar e tantos outros. A história desses brinquedos é, em boa medida, a própria história de como o futebol foi se transformando em produto, memória afetiva e item de colecionador.

Neste artigo, vamos percorrer a evolução dos “bonecos Brasil” — brinquedos da Seleção e de ídolos do futebol — dos anos 1960 até a era digital. Do carrinho de madeira pintado de verde e amarelo ao mini craque com uniforme oficial licenciado, passando pela febre de merchandising das Copas, o objetivo é responder a uma pergunta simples: como o boneco do nosso ídolo mudou junto com o futebol?

Dos tempos da rádio ao plástico duro: os primeiros bonecos de Seleção

Os primeiros registros de brinquedos diretamente associados à Seleção brasileira remontam aos anos 1960, logo após o bicampeonato mundial de 1958 e 1962. Ainda não se falava em “linha oficial de produtos”, mas o impacto da conquista de Pelé, Garrincha, Didi e companhia fez fabricantes de brinquedos correrem para “vestir” seus bonecos genéricos com as cores verde e amarela.

Na prática, o que se via nas lojas de brinquedo do Rio de Janeiro e de São Paulo eram jogadores de plástico com rostos padronizados, pintados à mão, com uniforme semelhante ao da Seleção — camisa amarela, calção azul, meião branco. Em muitos casos, o nome “Brasil” vinha apenas numa etiqueta colada ao pé da base.

Esses brinquedos tinham três características marcantes:

  • Não havia licenciamento oficial da CBD (Confederação Brasileira de Desportos, antecessora da CBF).
  • Os jogadores raramente eram identificados com nomes. Eram “o 9”, “o 10”, “o goleiro”.
  • A durabilidade era limitada, mas o valor afetivo, enorme. Para muitas crianças, era a única forma de “ver” a Seleção fora da televisão em preto e branco ou do radinho.
  • O foco não era o ídolo individualizado, mas o time. Isso combinava com a cultura da época, em que a ideia de “Seleção de todos” se sobrepunha à marca pessoal do craque. Ainda assim, Pelé já começava a furar essa bolha.

    Pelé, o primeiro ídolo-transformado-em-boneco

    A partir da Copa de 1970, no México, o fenômeno Pelé explode em escala global. A indústria de brinquedos percebe que aquele número 10 poderia ser, ele mesmo, um produto. No Brasil, fabricantes como a Estrela lançam bonecos de jogadores com traços minimamente inspirados em Pelé: pele mais escura, camisa 10, chuteira preta, pose de chute ou drible.

    Em entrevistas concedidas anos depois, colecionadores lembram que “não parecia exatamente o Pelé, mas todo mundo chamava de Pelé”. Era o início da personalização: o boneco deixava de ser apenas “jogador genérico do Brasil” e passava a carregar um rosto, um número, uma narrativa individual.

    É também nessa década que surgem brinquedos que reproduziam lances, como o famoso goleirinho com mola, jogos de botão temáticos e mini-campos com jogadores fixos em bases arredondadas. Alguns conjuntos traziam adesivos da bandeira do Brasil, reforçando o elo com a Seleção em plena era tricampeã (1958, 1962, 1970).

    Mesmo sem o aparato moderno de marketing, os anos 1970 já deixavam uma pista: o torcedor-amigo do time iria coexistir, cada vez mais, com o torcedor-fã de um personagem específico.

    A profissionalização do merchandising: de 1982 a 1994

    O início dos anos 1980 marca uma mudança importante. A CBF passa a olhar com mais atenção para o licenciamento e para o uso comercial do escudo da Seleção. A seleção de 1982, apesar de não ter sido campeã, consagra ídolos como Zico, Sócrates, Falcão. Nas vitrines, vemos:

  • Bonecos de plástico com uniformes oficiais mais fiéis (cores, detalhes, listras).
  • Jogadores com números que remetiam a ídolos específicos (camisa 8 “Falcão”, camisa 10 “Zico”).
  • Jogos de futebol de mesa (botão) e de tabuleiro com a marca “Seleção Brasileira”.
  • Os anos 1990 aceleram esse movimento. Em 1994, com o tetra conquistado nos Estados Unidos, o Brasil vive uma febre de produtos licenciados. Romário, Bebeto, Taffarel e Dunga viram bonecos articulados e miniaturas em plástico, muitas vezes lançados em parceria com grandes marcas de refrigerantes e fast food.

    Não era incomum encontrar, em jornais da época, anúncios do tipo: “Colecione os craques do tetra: a cada refeição, um boneco da Seleção”. Esses brinquedos, geralmente de 8 a 10 cm, tinham traços caricatos, mas facilmente reconhecíveis: o bigodinho do Bebeto, o cabelinho raspado do Romário, a bandana do Dunga.

    É nessa fase que surge um elemento fundamental para a memória do torcedor: o boneco passa a ser também um marcador de Copa. O adulto olha para o brinquedo e não lembra apenas do jogador, mas de um verão específico, de uma final de domingo, de uma comemoração em família.

    A era dos “mini craques”: Ronaldo, Rivaldo, Ronaldinho e companhia

    Entre o fim dos anos 1990 e o início dos 2000, uma palavra ganha força entre colecionadores: mini craques. Fabricantes internacionais como a Corinthian, e depois outras marcas, passam a produzir linhas inteiras de miniaturas de jogadores com foco em detalhes do rosto e do cabelo, em formato meio “cabeçudo”, que rapidamente se tornam febre entre torcedores.

    Ronaldo Fenômeno é, possivelmente, o grande protagonista dessa fase. Depois das Copas de 1998 e 2002, qualquer lojinha esportiva ou banca de jornal exibia suas miniaturas com os uniformes do Brasil, do Barcelona, da Inter de Milão, do Real Madrid. Os números ajudam a dimensionar o fenômeno: estimativas de colecionadores apontam que, apenas entre 1998 e 2006, mais de 50 versões diferentes de miniaturas de Ronaldo circularam pelo mundo, contando variações de camisa, pose e corte de cabelo.

    Outros ídolos da Seleção também ganham versões icônicas:

  • Rivaldo com a pose de chute de perna esquerda.
  • Ronaldinho Gaúcho com a famosa faixa na cabeça e cabelo preso.
  • Cafu levantando a taça da Copa de 2002.
  • Roberto Carlos em postura de cobrança de falta.
  • Nesse período, cresce também a cultura de exposição. Muitos torcedores deixam de ver aquele boneco como simples brinquedo infantil e passam a tratá-lo como peça de coleção, exibida em prateleiras, vitrines, escritórios. É comum ouvir relatos como o do designer paulista Marcelo, 38 anos, colecionador: “Eu dormia abraçado com o boneco do Romário em 94. Hoje, o Ronaldo 2002 fica na estante, ao lado da televisão. De brinquedo de criança virou decoração de adulto”.

    De Pelé a Marta e Neymar: representatividade e novos públicos

    À medida que o futebol feminino ganha espaço, especialmente a partir dos anos 2000, a ausência de bonecos de grandes jogadoras começa a incomodar. Marta, eleita seis vezes a melhor do mundo entre 2006 e 2018, demora a ganhar versões oficiais em miniatura no Brasil. As primeiras aparições costumam vir de ações pontuais de patrocinadores, com tiragens limitadas.

    Hoje, ainda que o volume seja menor em comparação ao futebol masculino, já é possível encontrar:

  • Miniaturas de Marta com o uniforme da Seleção, vendidas em lojas online especializadas.
  • Bonecas personalizadas produzidas por artesãos e pequenos fabricantes independentes, muitas vezes sob encomenda.
  • Brinquedos educativos que trazem meninas jogando futebol em versões sem rosto definido, mas com camisa verde e amarela, ampliando a identificação para o público infantil feminino.
  • Já Neymar Jr. representa a consolidação da era do “ícone global”. Desde a Copa de 2014, não é raro ver prateleiras inteiras dedicadas ao atacante: bonecos em tamanho médio reproduzindo suas tatuagens, corte de cabelo e chuteiras coloridas, além de linhas de miniaturas colecionáveis por clubes e Seleção.

    Em termos de volume de produtos licenciados, Neymar rivaliza com nomes como Ronaldo, Messi e Cristiano Ronaldo em diferentes mercados. No Brasil, a combinação “camisa 10 da Seleção + estrela de clube europeu + grande presença digital” tornou seu boneco um objeto desejado não apenas por crianças, mas por fãs de pop culture e colecionadores de artigos esportivos.

    Os bastidores da indústria: licenças, pirataria e nostalgia

    Se para o torcedor o boneco é um elo de afeto, para clubes, seleções e fabricantes ele é também um negócio. O licenciamento de produtos oficiais envolve contratos entre a CBF, jogadores (ou seus representantes) e empresas de brinquedos. Cada peça vendida costuma gerar um percentual de royalties para as partes envolvidas.

    Com a popularização desses itens, um problema cresce na mesma medida: a pirataria. Bonecos com uniformes falsificados, escudos mal desenhados e nomes levemente alterados (como “Neymaar”, “Ronldo”) invadem camelôs e feiras populares a cada Copa. Do ponto de vista legal, são produtos ilegais; do ponto de vista da memória afetiva, muitos brasileiros guardam justamente esses bonecos “genéricos” como lembrança de infância.

    A nostalgia, aliás, virou um nicho. Sites de leilão e comunidades de colecionadores negociam, a valores significativos, bonecos antigos da Seleção dos anos 1980 e 1990. Um conjunto completo dos “craques do tetra”, em bom estado, pode ultrapassar facilmente a casa das centenas de reais. Já peças raras, como tiragens limitadas de Pelé ou miniaturas importadas de Ronaldo, chegam a patamares ainda mais altos.

    Essa valorização faz com que alguns fabricantes resgatem linhas antigas em versões “retrô”. Não é coincidência que, ao lado do boneco atual de Neymar ou Vinícius Júnior, você encontre, na mesma prateleira, um Pelé clássico ou um Zico estilizado, com caixa inspirada na arte gráfica dos anos 1970 e 1980.

    Da prateleira ao estádio: quando o boneco vira personagem de arquibancada

    Outro fenômeno curioso da cultura do “boneco Brasil” é a migração do brinquedo para as arquibancadas. Torcedores passaram a levar bonecos gigantes infláveis ou pelúcias vestidas de verde e amarelo para jogos da Seleção, criando cenas que chamam a atenção das câmeras.

    Alguns exemplos marcantes:

  • Bonecos infláveis de Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho em jogos da Seleção no início dos anos 2000, com torcedores simulando comemorações.
  • Pelúcias de canarinho (muitas vezes inspiradas no mascote oficial) vestidas com camisas personalizadas.
  • Mini bonecos levantados em direção às câmeras nas arquibancadas, como se o torcedor dissesse: “ele está aqui comigo”.
  • Esse traslado do brinquedo da sala de casa para o estádio reforça a ideia de que o boneco funciona como uma extensão do torcedor: é o ídolo em miniatura, testemunhando a própria torcida do fã.

    Era digital: entre o físico e o virtual

    Com a popularização dos jogos de videogame, das redes sociais e, mais recentemente, de colecionáveis digitais (como NFTs), muita gente se perguntou se o boneco físico perderia espaço. Até agora, a resposta parece ser não — ou, no mínimo, “ainda não”.

    Em vez de substituir o brinquedo, o universo digital acabou criando novos contextos para ele. Alguns clubes e marcas já lançaram campanhas em que o comprador do boneco físico ganha um código para desbloquear um item virtual em jogo ou aplicativo. Outros apostam em realidade aumentada: ao apontar o celular para a embalagem, o torcedor vê o jogador em 3D, em movimento, reproduzindo um gol histórico.

    Além disso, os bonecos passaram a ser protagonistas nas redes sociais. Perfis de fãs publicam fotos de mini craques em diferentes estádios, cidades, viagens. O boneco, que antes ficava restrito ao quarto ou à sala, vira “influencer de bolso” e participa, simbolicamente, de um turismo esportivo em miniatura.

    Boneco Brasil como experiência de turismo esportivo

    Para quem gosta de unir futebol, história e viagens, os bonecos de Seleção e de ídolos também podem ser parte de um roteiro. Alguns dos principais pontos para encontrar peças interessantes e entender melhor essa cultura são:

  • Museu do Futebol (São Paulo): localizado no Estádio do Pacaembu, o museu exibe, ocasionalmente, brinquedos antigos em exposições temporárias e na lojinha temática. Vale ficar atento a mostras sobre Copas do Mundo, que frequentemente incluem bonecos e miniaturas.
  • Museu Seleção Brasileira (Rio de Janeiro): na sede da CBF, na Barra da Tijuca, o acervo explora a história da Seleção com camisas, troféus e recursos multimídia. A loja oficial costuma vender produtos licenciados, como miniaturas atuais de jogadores e mascotes.
  • Lojas oficiais de clubes: grandes clubes brasileiros, como Flamengo, Corinthians, Palmeiras, São Paulo, Grêmio e Internacional, frequentemente vendem miniaturas de seus ídolos com uniformes também da Seleção. É uma forma de unir paixão clubista e nacional.
  • Feiras de antiguidades e sebos: locais como o Bixiga (São Paulo), a feira da Praça XV (Rio de Janeiro) e mercados de pulgas em capitais pelo país são ótimos para encontrar bonecos antigos da Seleção, muitas vezes desbotados, mas carregados de história.
  • Eventos de colecionadores: encontros de colecionadores de futebol, geralmente divulgados em redes sociais, reúnem álbuns de figurinhas, camisas, ingressos e, claro, bonecos. São boas oportunidades para troca, compra e descoberta de peças raras.
  • Para o turista esportivo, incluir esses pontos no roteiro significa não apenas trazer um souvenir, mas também carregar uma parte da memória material do futebol brasileiro.

    Por que ainda nos apegamos a bonecos em plena era do streaming?

    Num mundo em que é possível rever qualquer gol histórico em segundos, em alta definição, por que um boneco de plástico continua gerando tanta identificação? As respostas variam, mas costumam passar por três dimensões:

  • Tátil: segurar o boneco é diferente de ver uma imagem na tela. Ele ocupa espaço na casa, na mesa, na estante. É um lembrete físico de um momento, de um ídolo, de uma Copa.
  • Narrativa: crianças (e muitos adultos) criam suas próprias partidas e finais de Copa com os bonecos. A imaginação completa o que o brinquedo, por si, não mostra.
  • Memória: o boneco funciona como gatilho de lembranças. Um Romário 94 pode remeter a um almoço de domingo; um Ronaldo 2002, a uma madrugada de festa; um Neymar 2014, a uma Copa “em casa”, com todas as suas alegrias e frustrações.
  • No fundo, o “boneco Brasil” é mais do que um brinquedo. É um fio que conecta gerações — o pai que brincou com o boneco do Zico entrega ao filho o mini craque do Neymar; o avô que viu Pelé ao vivo numa tarde de domingo presenteia o neto com uma miniatura do camisa 10, explicando por que aquele jogador foi diferente.

    A evolução desses brinquedos acompanha, passo a passo, a profissionalização do futebol, o crescimento da indústria do esporte e a transformação do torcedor em consumidor e colecionador. Mas, apesar de toda a lógica de mercado, o que permanece é algo bem simples: a vontade de ter o ídolo por perto, nem que seja em versão de 10 centímetros, plasticamente imperfeita, mas emocionalmente gigante.

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