Entre um jornal esportivo, uma revista de futebol e a tabela do campeonato, havia um item que aparecia com frequência nas bancas brasileiras dos anos 1960, 70 e 80: o bolsilivro de faroeste. Fininho, barato, com capas coloridas e títulos como “Pistoleiro sem Lei”, “Cidade de Covardes” ou “A Vingança de Durango Kid”, ele dividia espaço com álbuns de figurinha, cadernos de escalação e revistinhas de clube. Muita gente que ia à banca só para saber do time do coração saía também com um bangue-bangue no bolso.
Por que essas histórias de pistoleiros, duelos ao pôr do sol e xerifes solitários conquistaram tantos torcedores e atletas? O que o velho Oeste tem a ver com bola na rede, arquibancada e vestiário? Ao olhar para esse fenômeno, dá para contar um pedaço curioso da história da cultura esportiva no Brasil.
A banca de jornal como “estádio” da cultura popular
Para entender a força dos bolsilivros de faroeste entre torcedores, é preciso lembrar o papel das bancas de jornal nas cidades brasileiras entre as décadas de 1950 e 1980. Antes da internet, dos aplicativos e até da TV a cores se popularizar, a banca era um pequeno centro de informação e entretenimento.
Ali se encontravam, lado a lado:
Um torcedor que saía do trabalho e parava para comprar o jornal com o resultado do jogo da noite anterior acabava exposto a esse universo de leitura barata e imediata. Em 1975, por exemplo, em muitas capitais era comum encontrar, na mesma banca, o “Jornal dos Sports”, a “Revista Placar” e fileiras de livrinhos da Editora Monterrey, Vecchi, Ebal ou Bruguera, especializadas em faroeste.
O preço ajudava. Em anúncios publicados no fim dos anos 1970, bolsilivros costumavam custar significativamente menos que uma revista esportiva de grande formato. Isso fazia diferença para o torcedor que precisava escolher em que gastar alguns cruzeiros: muitas vezes, era jornal + bolsilivro, em vez de uma revista mais cara.
O faroeste como “campeonato” de honra, coragem e improviso
À primeira vista, parece que nada é mais distante do futebol brasileiro do que o deserto norte-americano, os saloons cheios de fumaça e as ruas de madeira do Oeste. Mas, na prática, o torcedor reconhecia ali alguns valores que também encontrava no esporte.
Nos bolsilivros de faroeste, o enredo clássico repetia elementos que qualquer apaixonado por futebol conhece bem:
Quantas vezes o leitor via um pistoleiro desconhecido chegar à cidade e ser desafiado pelo “campeão local”, um bandido temido ou um xerife experiente? A estrutura narrativa não ficava longe de um confronto entre um time pequeno e um gigante do futebol. O inesperado, a zebra, o herói que se afirma na hora certa: tudo isso conversava com o imaginário esportivo.
Não por acaso, expressões como “tiro certeiro”, “duelo” ou “atirar primeiro” migraram com naturalidade para o vocabulário dos narradores esportivos. Quantas vezes um chute de fora da área foi descrito como “um verdadeiro tiro”? Essa ligação simbólica ajudou o bangue-bangue a cair no gosto de quem vivia o esporte no dia a dia.
Concentração, viagem, vestiário: o bolsilivro como companheiro de estrada
Outro fator que aproximou o faroeste do esporte foi algo bem prático: o tamanho e o formato dos bolsilivros. Finos, leves, cabiam no bolso do agasalho de concentração, na mochila do goleiro reserva e até dentro da pasta do dirigente. Em viagens de ônibus de 8, 10 ou 12 horas por estradas precárias, tinha técnico que levava dezenas deles.
Em entrevistas dispersas de jogadores que atuaram nas décadas de 1960 e 1970, aparecem relatos recorrentes de leituras desse tipo. Alguns descrevem o bolsilivro como “passatempo de concentração”. Em muitas equipes, era o tipo de leitura que circulava de mão em mão:
A lógica era simples: eram histórias fáceis de começar e terminar em uma viagem ou em um dia de concentração. Enquanto nem sempre havia TV no hotel e o rádio ficava monopolizado pela equipe de comentaristas, o bolsilivro oferecia uma fuga rápida e individual.
Um ex-atleta resumiu em um depoimento publicado em meados dos anos 2000: “No ônibus, ou você dormia, jogava baralho ou lia bangue-bangue”. Mesmo quando os nomes de autores e coleções se perdiam na memória, a imagem do pistoleiro de capa gasta permanecia associada à rotina do futebol.
O auge editorial: quando o bangue-bangue dominava a banca
O faroeste em formato de bolsilivro teve seu auge no Brasil entre o fim dos anos 1950 e o início dos 1980. Editoras como Vecchi, Monterrey, Ebal, Bruguera e Record lançavam coleções seriadas, com dezenas ou centenas de números.
Entre as séries mais presentes nas bancas, estavam:
No mesmo período, o futebol brasileiro vivia sua fase de consolidação como potência mundial, com os títulos de 1958, 1962 e 1970, a chegada dos grandes estádios e a explosão do radiojornalismo esportivo. O consumidor que ia à banca para seguir a seleção ou o clube do coração era exposto mensalmente a novas capas de bangue-bangue. A coexistência dos dois mundos – bola e pistola – não foi coincidência; foi um cruzamento de mercados e hábitos culturais.
Com o passar do tempo, a popularização da televisão, o aumento do custo de papel e as mudanças de gosto do público foram reduzindo o espaço do bolsilivro. Muitos títulos desapareceram silenciosamente das bancas no fim dos anos 1980. Mas, enquanto duraram, fizeram parte da paisagem de quem vivia o esporte não só no estádio, mas também na rotina de jornaleiro, radialista e torcedor de bairro.
Heróis solitários, camisas 10 e goleiros “xerifes”
Há também uma dimensão simbólica nessa relação entre faroeste e esporte. O pistoleiro solitário, que precisa tomar decisões rápidas sob pressão, conversa com figuras clássicas do futebol brasileiro:
Não é por acaso que, em crônicas esportivas, surgiram expressões como “xerife da zaga”, ou metáforas de “paredão que não deixa passar ninguém, como um pistoleiro que não erra o alvo”. O imaginário do faroeste, popularizado justamente pelos bolsilivros, forneceu um repertório de imagens para jornalistas e torcedores.
Também há o tema da honra e da lealdade. Em muitas tramas de bangue-bangue, o herói precisa escolher entre o dinheiro e o compromisso moral com a cidade ou um amigo. No futebol, o torcedor reconhece o jogador que recusa contratos maiores para ficar no clube, o atacante que joga no sacrifício em uma final ou o volante que “compra a briga” pela equipe. São arquétipos que dialogam.
Arbitragem, violência e limite entre o jogo e o “bangue-bangue”
Se o faroeste ajudou a criar metáforas heroicas, também ofereceu imagens para falar dos excessos. Ao longo das décadas, não faltaram manchetes e comentários dizendo que determinado clássico “virou bangue-bangue” ou que o jogo “foi um verdadeiro faroeste”, quando a partida desandava em pancadaria, cartões vermelhos e discussões com a arbitragem.
Ao usar esse tipo de comparação, o discurso esportivo colocava em xeque justamente a linha tênue entre competição e caos. No faroeste, a lei muitas vezes é frágil, e a justiça é feita pela força. No esporte, teoricamente, o árbitro é a figura que impede que o duelo vire guerra. Quando o controle se perde, o vocabulário do bangue-bangue reaparece para explicar a sensação de desordem.
Essa ambivalência – ora exaltando a coragem, ora criticando a violência – mostra que o faroeste não foi apenas entretenimento paralelo, mas um espelho cultural que ajudou a torcida a interpretar o que via em campo.
Dos bolsos às cabines: narradores que cresceram lendo faroeste
Outra ponte entre os bolsilivros e o esporte passa pelos narradores e comentaristas que se formaram como leitores justamente nesse universo. Nos anos 1960 e 1970, muitos jovens que sonhavam em trabalhar com rádio esportivo consumiam esse tipo de literatura nas mesmas bancas em que compravam jornais de resultados.
No microfone, as influências apareciam em pequenas expressões:
Ainda que nem sempre mencionassem diretamente os títulos que liam, a construção de imagens rápidas, cenários de tensão e clímax iminente dialogava com a estrutura dos romances de bolso. Era como se a final de campeonato fosse narrada com o mesmo senso de urgência de um confronto no saloon.
Torcedor, colecionador e viajante: onde o bangue-bangue ainda vive
Hoje, com a era digital, o bolsilivro de faroeste praticamente desapareceu das bancas. Mas ele sobrevive em sebos, coleções particulares e feiras de livros usados, muitas vezes em bairros tradicionais de futebol. Para o torcedor que gosta de unir esporte e memória, esse pode ser um passeio curioso.
Em várias capitais, é possível fazer um roteiro quase temático:
Não é raro encontrar um livrinho de bangue-bangue com algo como “Flu 2 x 1 Fla – gol aos 44 do 2º tempo” rabiscado em uma página em branco. É o encontro, no papel já amarelado, entre dois mundos que dividiram o mesmo espaço físico e afetivo por décadas.
Por que essa mistura ainda faz sentido para o torcedor de hoje?
Mesmo que o formato físico do bolsilivro tenha perdido espaço, as perguntas que ele colocava continuam presentes na rotina de quem acompanha o esporte:
As respostas mudam de geração para geração, mas a estrutura dramática é parecida. De certa forma, quando um torcedor analisa a postura de um camisa 10 em uma decisão, ele está fazendo, sem perceber, o mesmo tipo de julgamento que fazia do pistoleiro solitário diante de um duelo.
E, da mesma maneira que o bangue-bangue ajudava a passar o tempo entre um treino e outro, hoje são séries, filmes, jogos eletrônicos e redes sociais que ocupam esse espaço. O cenário mudou, a linguagem também, mas a necessidade de narrativas que acompanhem a paixão pelo esporte continua.
No fundo, a história dos bolsilivros de faroeste nas bancas frequentadas por torcedores é também a história de como o brasileiro mistura referências e constrói seu imaginário esportivo a partir de diferentes fontes. Entre uma tabela de artilharia e uma capa com cowboy de chapéu tombado sobre os olhos, formou-se uma geração que aprendeu a ver o futebol como grande espetáculo dramático, cheio de duelos, injustiças, redenções e tiros certeiros – de preferência, no ângulo.
