Memorias do esporte

Abujamra provocações: como o programa marcou o jornalismo esportivo e cultural

Abujamra provocações: como o programa marcou o jornalismo esportivo e cultural

Abujamra provocações: como o programa marcou o jornalismo esportivo e cultural

Quando se fala em jornalismo esportivo, muita gente pensa em mesa-redonda, narração de jogo, zona mista. Mas, para entender como o esporte passou a ser tratado também como fenômeno cultural, é impossível ignorar um programa que, à primeira vista, não tinha nada a ver com bola, gol ou arquibancada: Provocações, de Antônio Abujamra, na TV Cultura.

Num cenário minimalista, com luz baixa, fundo preto e uma cadeira que parecia mais um “banco dos réus”, Abujamra criou um espaço em que artistas, intelectuais, atletas e jornalistas esportivos eram confrontados com perguntas que raramente apareciam na cobertura diária. A cada “Você é feliz?” ou “O que é a vida?”, o programa desmontava personagens e máscaras. E aí está o ponto: essa maneira de entrevistar mudou também o jeito de falar de esporte na TV e, depois, na internet.

O contexto: TV Cultura, virada dos anos 2000 e um país em transformação

No começo dos anos 2000, o Brasil vivia uma fase de transição. A internet ainda engatinhava, a televisão aberta concentrava grande parte do debate público e os programas de entrevistas seguiam, em geral, um padrão protocolar: apresentador à mesa, roteiro previsível, respostas confortáveis. Nesse cenário, a TV Cultura já era reconhecida por uma programação mais analítica e menos dependente da lógica comercial.

É nesse ambiente que Provocações surge, entre o início dos anos 2000 e meados da década de 2010, ocupando um espaço singular: entrevistas longas, edição que preservava o silêncio e um apresentador que, em vez de “conduzir”, parecia enfrentar o convidado. Não era um talk show de entretenimento, tampouco um debate político tradicional. Era, como o nome entregava, um laboratório de provocações.

Enquanto isso, o jornalismo esportivo atravessava outra transformação. A lógica do “futebol apenas como resultado” começava a ser questionada. O torcedor já não se contentava só com o placar; queria entender bastidores, crises de vestiário, trajetórias pessoais, contextos sociais. O esporte, cada vez mais, era visto como espelho do país – e programas como Provocações ajudaram a empurrar essa mudança.

O formato de Provocações: perguntas diretas, silêncio e risco

Uma das marcas registradas do programa era a recusa ao formato confortável. Abujamra não tinha medo de deixar o convidado em silêncio. Não preenchia cada segundo com palavras. Isso, num ambiente televisivo acostumado à falação ininterrupta, era quase uma ruptura.

O método se apoiava em alguns pilares claros:

Esse modelo, aplicado a figuras do esporte, gerava algo raro: atletas, técnicos e comentaristas falando de medo, vaidade, limites físicos e emocionais, erros de carreira, arrependimentos. Em vez da resposta padrão “faz parte do futebol”, surgiam confissões e reflexões.

Quando o esporte sentou na cadeira de Abujamra

Embora o programa fosse classificado como cultural, o esporte aparecia com frequência – seja com protagonistas diretamente ligados às quadras e gramados, seja com cronistas que haviam transformado o jornalismo esportivo em literatura, crônica ou comentário político.

Quando um personagem do esporte era convidado, o roteiro fugia totalmente do clichê. Em vez de lembrar apenas gols, títulos e finais de campeonato, Abujamra mirava em questões como:

Para muitos atletas, acostumados a entrevistas curtas na zona mista, responder a esse tipo de pergunta era quase um exercício inédito. Ali não havia assessor de imprensa interrompendo, nem a fuga tradicional para o “discurso coletivo”: “o grupo está de parabéns”, “pensamos jogo a jogo”. O foco era o indivíduo, a biografia, a consciência de si.

Do ponto de vista do torcedor – e do jornalista esportivo atento – Provocações escancarava uma ideia poderosa: por trás do número na camisa, há conflitos familiares, contradições políticas, crises de identidade, culpas que não aparecem no noticiário de resultados. A figura do atleta ganhava camadas humanas que mudavam a forma de olhar para a arquibancada e para a TV.

Abujamra e o jeito de entrevistar que mudou o jornalismo esportivo

Qual é o impacto direto de um programa cultural sobre a prática de quem cobre esporte? Ele não aparece da noite para o dia, mas se percebe nas mudanças de abordagem, de linguagem e de expectativa do público.

Três elementos, em particular, dialogam fortemente com o jornalismo esportivo contemporâneo:

Com o tempo, essas referências foram aparecendo em mesas-redondas mais analíticas, em documentários esportivos e em séries de entrevistas especiais, tanto na TV quanto nas plataformas digitais. O padrão “pergunta dura, porém respeitosa” e o uso da biografia como fio condutor do debate são heranças claras desse espírito.

Pontes entre cultura e bola: o que o programa ensinou sobre ídolos

A forma como Provocações tratava seus convidados é particularmente reveladora quando pensamos na categoria “Histórias de Ídolos”, tão cara aos torcedores e à memória esportiva. Abujamra parecia ter um método que, transplantado para o esporte, funciona quase como guia de entrevista em profundidade.

Alguns ensinamentos desse método:

Para um blog que se dedica a registrar memórias esportivas, a influência é direta: contar a história de um ídolo já não significa apenas listar gols, troféus e prêmios individuais, mas também entender decisões, arrependimentos, relações com a torcida, com a imprensa e com o próprio corpo. Em outras palavras, ir além da súmula.

Curiosidades, bastidores e o que não ia ao ar nas transmissões

Outro ponto em que Provocações se aproxima do olhar de bastidor do jornalismo esportivo está na forma de lidar com o “não dito”. Muita coisa interessante em entrevistas de atletas nunca chega ao torcedor porque não cabe na lógica da transmissão ao vivo. Já no programa de Abujamra, o que interessava, justamente, era aquilo que sobrava do roteiro padrão.

Quando figuras ligadas ao esporte sentavam na cadeira do programa, vinham à tona bastidores que dificilmente apareceriam num pós-jogo:

Para a audiência, esse tipo de relato ajudava a desmontar a ideia de que a vida do atleta é apenas glamour. Para o jornalista esportivo, era um lembrete poderoso: as histórias mais ricas costumam estar fora da zona mista, longe da coletiva de cinco minutos, e exigem tempo, escuta e coragem para fazer a pergunta incômoda.

Não por acaso, muitos documentários esportivos lançados nos últimos anos – no Brasil e fora dele – recorrem à mesma estratégia: câmera fixa, atmosfera intimista, protagonista falando de temas delicados, sem pressa. O eco de Provocações é visível, ainda que nem sempre assumido.

Do estúdio escuro aos podcasts esportivos: o legado na era digital

Com o avanço da internet e a explosão dos conteúdos sob demanda, a lógica do “bate-papo profundo” se espalhou. Hoje, ex-jogadores, treinadores, árbitros e dirigentes passam horas em estúdios de podcast, respondendo a perguntas que vão muito além do 4-4-2 e do último pênalti marcado.

Alguns traços desse cenário atual remetem diretamente ao espírito do programa de Abujamra:

Ao mesmo tempo, há um ponto de atenção: o risco de transformar qualquer pergunta mais dura em espetáculo sensacionalista. Abujamra provocava, mas não humilhava – era uma dramaturgia pensada, não um “vale tudo” por clique. Para o jornalismo esportivo, essa linha tênue é fundamental.

Quando um ex-jogador admite um erro grave, fala abertamente de dependência química ou de problemas financeiros, cabe ao entrevistador decidir se aquilo será explorado como “exposição de intimidade” ou tratado com responsabilidade e contexto. A lição de Provocações está justamente em usar a pergunta difícil como ponto de partida para reflexão, e não apenas como isca.

Por que ainda faz sentido assistir Abujamra para entender o esporte hoje

Se você acompanha futebol, vôlei, basquete ou qualquer outra modalidade e gosta de ir além do resultado, revisitar entrevistas de Provocações é quase um exercício de formação. Ali está um método aplicável a qualquer conversa séria sobre esporte:

Para quem produz conteúdo – seja em blogs, podcasts, vídeos ou reportagens – o aprendizado é duplo. De um lado, está a técnica: como construir uma entrevista em camadas, como preparar perguntas que vão além do óbvio, como dar espaço para respostas desconfortáveis. De outro, está a ética: até onde ir, que tipo de dor merece ser respeitada, como lidar com fragilidades sem transformar tudo em espetáculo.

O esporte brasileiro sempre rendeu grandes personagens e histórias riquíssimas, que atravessam ditaduras, transformações sociais, mudanças econômicas e revoluções táticas. O que faltava, muitas vezes, era um espaço em que esses personagens pudessem ser confrontados com suas próprias escolhas. Provocações mostrou que esse espaço é possível.

Num tempo em que o torcedor tem acesso a estatísticas avançadas, câmeras táticas e análises em tempo real, talvez o maior diferencial esteja justamente naquilo que Abujamra perseguia com teimosia: entender o ser humano por trás do uniforme. No fim das contas, é ali, entre a pergunta incômoda e a resposta sincera, que o jornalismo esportivo mais cresce – e que a memória do esporte ganha profundidade que nenhuma súmula consegue registrar.

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