Jericoacoara depois do pôr do sol: da vila silenciosa ao point do esporte
Antes de ganhar status de destino internacional, Jericoacoara era, até o fim dos anos 1980, uma vila de pescadores isolada no litoral oeste do Ceará, acessível apenas por trilhas de areia e caminhonetes 4×4. Hoje, a mesma vila de ruas de areia é cenário de noites movimentadas, bares cheios, lua cheia sobre o mar e conversas que começam falando de manobra e terminam em planos de próxima temporada de vento.
Para quem chega atraído pelo vento constante – que entre agosto e dezembro sopra com média de 25 a 30 nós – a rotina costuma seguir um roteiro quase religioso: velejo ou surf até o fim da tarde, subida à Duna do Pôr do Sol, banho rápido na pousada… e, então, a segunda parte do dia começa. É aí que Jericoacoara se transforma: pranchas encostadas na porta, pés ainda cheios de areia e histórias de campeonatos, quedas e “melhor onda da vida” circulando de mesa em mesa.
A noite em Jeri não é marcada por grandes casas de show ou baladas gigantescas. O que define o clima é a mistura: mochileiros, famílias, casais, atletas profissionais, instrutores de escola de surf e kitesurf, todos dividindo os mesmos bares, as mesmas calçadas de areia e, muitas vezes, o mesmo cooler de cerveja.
Pôr do sol, lua cheia e o “apito final” do dia
Em uma cidade esportiva, o apito final costuma ser o pôr do sol. Em Jericoacoara, ele é literalmente o sinal para troca de turno: sai o esporte na água, entra o “campeonato” de histórias de mesa de bar.
Por volta das 17h30, a Duna do Pôr do Sol começa a encher. Em dias de vento forte, é comum ver kitesurfistas ainda voltando da água, velejando bem perto da faixa de areia, arrancando aplausos dos turistas. A cena lembra aquele aquecimento pré-jogo em estádio lotado: cada manobra mais alta vira motivo para grito coletivo.
Quando o sol toca o horizonte e o costumeiro aplauso ecoa – uma espécie de tradição não escrita desde os anos 1990 – muita gente faz o caminho direto da duna para a rua principal. Nos dias de lua cheia, o espetáculo é duplo: o sol se esconde no mar, a lua nasce por trás das dunas, e o cenário termina de se montar para a noite.
Um kitesurfista gaúcho, que frequenta Jeri desde 2012, costumava definir assim essa mudança de turno: “Quando o sol desce, a adrenalina da água vira energia de conversa. Você sai do mar querendo contar cada manobra que acertou, cada rajada que te tirou da linha. A noite aqui começa com replay de sessão, tipo vestiário depois da final”.
Bares, forró e ruas de areia: o circuito noturno da vila
Depois do pôr do sol, a Rua Principal e a Rua do Forró se tornam uma espécie de “corredor de atletas e torcedores”, só que de chinelo. Em vez de arquibancada, são mesas na calçada. Em vez de telão de estádio, pranchas penduradas na parede.
Entre os pontos mais procurados por quem vive o esporte durante o dia, a lógica costuma seguir um roteiro não oficial:
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Happy hour pós-mar – Logo após o banho, bares com vista para a rua principal começam a encher de surfistas e kitesurfistas ainda com a lycra secando. Cerveja gelada, água de coco e porções simples dominam as mesas.
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Bares “de briefing” – Já um pouco mais tarde, surgem as rodas com vídeos de GoPro passando de celular em celular. É quando aparecem termos como “linha”, “ondinha de inside” e “rajada traíra” ditos com a mesma naturalidade com que se comenta um gol aos 45 do segundo tempo.
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Forró e música ao vivo – A partir das 22h, pequenas casas com trios de forró, reggae e MPB recebem os que ainda têm perna depois de um dia de velejo ou remada. É mais comum do que parece ver alguém dançando com a camiseta de escola de kitesurf ou de campeonato local.
Um empresário local, dono de bar desde 2004, costuma resumir o perfil da clientela noturna: “Em alta temporada, dá para dizer que sete em cada dez mesas têm alguém que passou o dia na água. O cara pede uma cerveja, um prato de peixe e, antes de olhar o cardápio, já pergunta: ‘E amanhã, como é que vem o vento?’”.
Histórias de surfistas: mar pequeno, grandes relatos
Quando o assunto é surf, Jericoacoara não tem a fama de picos de onda gigante como Fernando de Noronha ou Hawaii. Mas isso não impede que a noite da vila seja recheada de relatos que misturam técnica, emoção e um certo exagero típico de resenha esportiva.
Na maré certa, em dias de swell de leste, forma-se uma direita mecânica em frente à vila, especialmente entre os meses de dezembro e março. À noite, são comuns conversas que começam com dados bem objetivos – “hoje deu série de 1 metro, intervalo de 8 segundos, vento terral cedo” – e avançam para a parte mais subjetiva: “Foi a onda mais longa da minha vida”, “Entrei para pegar duas, saí depois de uma hora e meia”.
Um surfista cearense, que disputa campeonatos regionais desde o fim dos anos 2000, certa vez descreveu a sensação de surfar em Jeri e depois circular pelos bares: “Aqui o pico continua na rua. Você termina a sessão, e à noite as pessoas querem ver o vídeo, comentar a manobra, falar de prancha. É como se o campeonato nunca acabasse”.
As histórias costumam seguir um roteiro quase cronológico, em tom de crônica esportiva:
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Acordar e checar as condições – A primeira frase é quase sempre “acordei antes do sol”. Na sequência, vêm as informações: direção do vento, tamanho do swell, maré.
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A onda-chave – Todo relato de surfista tem um momento central, a “onda do dia”. À noite, essa onda ganha detalhes: a entrada no drop, o posicionamento na parede, o tempo dentro da linha.
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O desfecho – Quase sempre vem acompanhado de riso. “Saí da água quebrado”, “Remei tanto que não sentia mais o braço”, “Terminei o dia com areia até na alma”.
Para quem gosta de ouvir – e não apenas de praticar – a noite em Jeri é um prato cheio: cada mesa vira uma espécie de coletiva de imprensa improvisada, com direito a perguntas, replays em vídeo e, claro, divergências sobre quem pegou a melhor onda do dia.
Vento, manobras e quilometragem: bastidores dos kitesurfistas
Se o surf domina muitas conversas entre dezembro e março, o kitesurf assume o protagonismo entre julho e novembro, quando o vento entra com mais força e constância. Para os kitesurfistas, a noite é quase uma “análise tática” do que aconteceu na água.
Os diálogos giram em torno de dados bem concretos:
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Vento – “Hoje deu 25 a 30 nós, rajando 35.”
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Distância percorrida – Ciclocomputadores e relógios GPS viram personagens principais. “Deu 40 km de downwind”, “Velejo curto, 18 km só para aquecer”.
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Período de temporada – “Em setembro do ano passado choveu um dia só,” “Em 2022, a melhor semana de vento foi a da lua cheia de agosto”.
Uma instrutora de kitesurf, radicada em Jeri desde 2015, descreve a importância da noite na vila para a própria evolução técnica dos alunos: “Muita coisa que a gente não consegue explicar direito na água, acaba explicando depois, na mesa do bar. Pega o guardanapo, desenha a linha, mostra o vídeo no celular. A noite, aqui, é meio sala de aula também”.
Não é raro ver grupos mistos – um francês, uma alemã, um paulista, um cearense – discutindo, em três idiomas diferentes, qual foi a melhor escolha de tamanho de kite para o dia. As diferenças culturais somem diante dos números: 7m, 9m, 12m, 25 nós, 30 nós. É a linguagem universal do vento.
Campeonatos, calendário e memória esportiva à mesa
Como todo lugar que se consolida como arena esportiva, Jericoacoara também acumula uma memória de campeonatos e eventos que volta à tona quando a noite cai. É comum ouvir referências a etapas antigas de circuitos de kitesurf e windsurf no litoral cearense, a campeonatos brasileiros de ondas realizados na região, ou mesmo a shows de freestyle que marcaram época na década de 2010.
À mesa, em uma noite qualquer de outubro, é possível ouvir conversas que citam:
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Resultados de provas – “Em 2018, fulano voou muito aqui, ganhou a categoria big air fácil”.
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Recordes pessoais – “Meu maior salto foi justamente nessa praia, 15 metros marcados no relógio”.
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Calendário esportivo – “Meu plano é ficar até novembro, porque é quando o vento encaixa com mais constância”.
Esse cruzamento de memórias vai formando uma espécie de “arquivo oral” do esporte em Jericoacoara. Para um jornalista esportivo, a vila é um prato cheio: datas, nomes, condições de vento, relatos de viradas improváveis em campeonatos, histórias de lesões e recuperações que mudaram rotas de carreira.
Um kitesurfista profissional brasileiro, que usou Jeri como base de treinos em mais de uma temporada, resume assim esse papel da vila na construção de trajetórias: “Quando você entra numa noite qualquer aqui, vai encontrar alguém que está começando no esporte, alguém no auge da carreira e alguém que já parou de competir, mas não consegue ficar longe do vento. Todo mundo se encontra no mesmo bar”.
O que o turista-espectador precisa saber para viver a noite esportiva de Jeri
Para quem viaja mais como espectador apaixonado por esporte do que como atleta, Jericoacoara oferece uma oportunidade rara: acompanhar, de muito perto, a rotina de treinamento e descanso de surfistas e kitesurfistas. E a noite é parte essencial dessa rotina.
Algumas dicas práticas ajudam a aproveitar melhor essa experiência:
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Escolha a época de acordo com o que quer ver – Entre julho e novembro, as chances de pegar vento forte e muitos kites na água são maiores. Entre dezembro e março, aumentam as chances de boas ondulações para o surf. A noite reflete isso: mais conversas sobre manobras aéreas de kite em um período, mais resenhas de linha de onda em outro.
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Programe-se para a lua cheia – Noites de lua cheia em Jeri têm impacto direto no clima da vila. Além do visual, influenciam até algumas tradições, como passeios noturnos e jantares mais demorados na areia. Esportistas costumam guardar na memória certas sessões que se aproximam dessa fase lunar, e isso aparece nas histórias à mesa.
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Observe as camisetas – Camisetas de escolas, provas e campeonatos funcionam quase como credenciais. Quem veste uma peça de etapa mundial, por exemplo, normalmente carrega boas histórias. Um “você correu essa prova?” pode render uma longa conversa.
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Não tenha pressa – Em Jeri, o relógio da noite gira em outro ritmo. Jantares começam mais tarde, bares ficam movimentados até depois da meia-noite, especialmente em alta temporada. Para quem passou o dia assistindo a manobras da praia, é uma chance de transformar sensação de arquibancada em bate-papo direto com quem estava na água.
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Leve curiosidade, não só câmera – Fotos e vídeos são parte da experiência, mas as melhores memórias costumam nascer das conversas. Perguntar como foi a primeira vez da pessoa em Jeri, qual foi o dia de vento mais marcante, ou que prancha ela levaria para uma viagem só de ida, costuma render respostas cheias de dados, emoções e, claro, boas risadas.
Entre o bar e a beira-mar: quando a vila vira crônica esportiva
Jericoacoara tem algo que muitos centros esportivos perderam com o tempo: a proximidade quase total entre arena e bastidores. Não há grandes portões, zonas mistas cercadas ou áreas VIP isoladas. A mesma pessoa que você viu tentando uma manobra arriscada às 16h pode estar sentada na mesa ao lado às 21h, com o pé ainda marcado pelo strap da prancha.
Para quem visita a vila com olhar de amante do esporte, a noite em Jeri funciona como um capítulo extra do “jogo” que aconteceu durante o dia. É ali que surgem as leituras táticas, os relatos em primeira pessoa, as análises de equipamento, os planos para a sessão seguinte. Entre um prato de peixe, um som de forró vindo da rua do lado e uma lua cheia atravessando o céu, a vila se transforma em grande sala de imprensa a céu aberto, onde cada história vale como registro de mais um dia de mar e vento.
No fim das contas, é essa mistura que faz a noite em Jericoacoara ser única: não é apenas sobre bebida, música e movimento de gente. É sobre memória esportiva sendo construída em tempo real, em ruas de areia, à luz da lua, ao som de pranchas encostando na parede e de vozes que ainda carregam o sal de mais um dia inesquecível na água.