Zico e a magia da camisa 10: lembranças, gols e legado no futebol brasileiro

Zico e a magia da camisa 10: lembranças, gols e legado no futebol brasileiro

A magia da camisa 10 no Brasil antes de Zico

Quando se fala em camisa 10 no Brasil, o imaginário coletivo costuma ir direto a Pelé. Desde a Copa de 1958, o número passou a representar o jogador capaz de pensar o jogo e decidir partidas com um toque. Porém, durante os anos 1970 e 1980, outro nome se encarregou de manter viva – e de certa forma reinventar – essa tradição: Arthur Antunes Coimbra, o Zico. No Flamengo, na Seleção e até no futebol italiano, ele deu à camisa 10 uma nova camada de significados: técnica refinada, inteligência tática, preparação física e liderança silenciosa.

Mais do que um craque, Zico virou sinônimo de meia completo. Armava, finalizava, batia faltas, organizava o time e assumia a responsabilidade nos momentos de maior pressão. A pergunta que se faz, mais de 40 anos depois de seu auge, é simples: como um garoto franzino da Zona Norte do Rio se transformou em um dos maiores símbolos da camisa 10 no mundo?

Da Quintino Bocaiúva à Gávea: o menino franzino que virou « Galinho »

Zico nasceu em 3 de março de 1953, no bairro de Quintino Bocaiúva, subúrbio do Rio de Janeiro. Filho de imigrantes portugueses, cresceu em uma casa em que o futebol e o Flamengo eram parte do cotidiano. Como tantos outros garotos brasileiros, começou jogando na rua, em peladas com os irmãos e amigos. A diferença é que, desde cedo, o talento técnico chamava a atenção.

Em 1967, depois de se destacar em torneios amadores, Zico fez testes no Flamengo. Havia, porém, um problema: o físico. Magro, de pernas finas, o garoto não parecia ter “corpo de profissional” para muitos olheiros da época. O próprio Zico já contou, em diversas entrevistas, a frase que ouviu repetidas vezes: “Esse menino é bom de bola, mas é muito fraco fisicamente”.

A história começa a mudar quando o preparador físico José Roberto Francalacci entra em cena no início dos anos 1970. Com um trabalho específico de musculação e condicionamento – algo ainda pouco comum no Brasil –, Zico começou a ganhar massa e resistência. Em pouco tempo, aquele meia talentoso ganhou também intensidade e explosão. O “Galinho de Quintino” deixava de ser apenas promessa para virar projeto de protagonista.

A consolidação no Flamengo e a construção de um ídolo

A estreia profissional de Zico pelo Flamengo aconteceu em 1971, mas foi a partir de 1974 que ele se firmou como titular absoluto e referência técnica do time. A fase coincidiu com a reformulação do clube, que apostava em uma base jovem: Junior, Leandro, Adílio, Andrade e Nunes formariam, com o camisa 10, o esqueleto de uma das equipes mais vitoriosas da história do futebol brasileiro.

Entre 1974 e 1983, Zico viveu seu auge com a camisa rubro-negra. Nesse período, conquistou o Campeonato Brasileiro em 1980, 1982 e 1983, além de vários títulos estaduais. A peça central desse time era o camisa 10, responsável por ditar o ritmo, encontrar passes entre linhas e aparecer na área como elemento surpresa.

As estatísticas ajudam a dimensionar o impacto: Zico marcou 508 gols em 731 jogos pelo Flamengo, segundo dados oficiais do clube. Isso faz dele o maior artilheiro da história rubro-negra. Em 1979, ele viveu uma temporada particularmente simbólica, balançando as redes 81 vezes em 72 partidas. Em um meio-campista, essa produtividade ofensiva chama a atenção até hoje.

Não era apenas a quantidade de gols, mas a qualidade. Faltas milimetricamente cobradas, chutes de fora da área, infiltrações em velocidade, conclusões de primeira. O Maracanã aprendeu a prender a respiração quando o árbitro marcava falta na entrada da área: se a bola era de Zico, o silêncio vinha antes da explosão.

Tóquio, 1981: o Flamengo do 10 que conquistou o mundo

O ponto alto da carreira de Zico no Flamengo – e um dos “grandes momentos do esporte” na memória do torcedor brasileiro – foi o Mundial Interclubes de 1981. Depois de conquistar a Libertadores contra o Cobreloa, o time viajou ao Japão para enfrentar o Liverpool, campeão europeu. O clube inglês, acostumado a dominar a Europa, sabia da qualidade do rival, mas talvez não imaginasse o nível de atuação que veria naquele 13 de dezembro, em Tóquio.

Em apenas 45 minutos, o Flamengo atropelou o Liverpool e decidiu a partida. O placar de 3 a 0 ao intervalo refletia a superioridade tática e técnica dos brasileiros. Zico, atuando como um “10 moderno”, recuava para participar da saída de bola, acelerava o jogo pelos flancos e se aproximava da área para tabelar com Nunes e Tita.

Ele não marcou gols, mas deu duas assistências e comandou as principais ações ofensivas. Anos depois, o zagueiro inglês Phil Thompson admitiria: “Nós não sabíamos muito sobre o Flamengo. Depois daquele jogo, passamos a saber sobre Zico”. Essa frase, frequentemente lembrada em reportagens e documentários, sintetiza bem o impacto internacional daquela atuação.

Aquela manhã no Japão consolidou Zico como um dos maiores jogadores do mundo. A camisa 10 rubro-negra, já carregada de simbolismo, passou a ser vista também como símbolo de excelência internacional. Para muitos torcedores, ali se deu a consagração definitiva do “maior ídolo da história do Flamengo”.

Zico e a camisa 10 da Seleção: talento, expectativas e frustrações

Se no Flamengo a história de Zico é contada quase sempre em tom de épico, na Seleção Brasileira o roteiro é mais complexo. Ele disputou três Copas do Mundo – 1978, 1982 e 1986 –, marcou gols importantes, encantou torcedores mundo afora, mas saiu de todas sem levantar a taça. Para alguns, uma “injustiça do futebol”; para outros, a prova de que até os maiores craques esbarram em fatores que fogem ao controle individual.

Em 1978, na Argentina, Zico ainda não era o protagonista absoluto, mas já mostrava flashes do que seria nos anos seguintes. A Copa de 1982, porém, é o grande marco. O time de Telê Santana, com Sócrates, Falcão, Cerezo, Júnior e Zico, formou uma das seleções mais admiradas da história, mesmo sem o título. O camisa 10 chegou ao Mundial em seu melhor momento, vindo de grandes temporadas pelo Flamengo.

Os números da Copa de 82 ajudam a ilustrar sua relevância: Zico marcou 4 gols em 5 jogos e participou diretamente da maioria das jogadas ofensivas do Brasil. A vitória por 3 a 1 sobre a Argentina, em Barcelona, teve atuação memorável do meia, com gol e assistência. Ainda assim, o torneio ficou marcado pela derrota por 3 a 2 para a Itália, em Sarrià, partida em que ele sofreu forte marcação de Gentile e não conseguiu desempenhar com a mesma liberdade.

Em 1986, no México, a história já era outra: Zico vinha de lesões no joelho, não tinha o mesmo ritmo físico e foi usado com parcimônia. Entrou no segundo tempo contra a França, nas quartas de final, sofreu pênalti – que acabaria desperdiçando – e viu o Brasil ser eliminado nos tiros da marca de cal. Anos depois, ele resumiria aquele momento: “Eu queria estar em campo, mesmo longe das melhores condições. Jogador quer decidir, para o bem ou para o mal”.

Números, gols e momentos que moldaram o mito

A carreira de Zico é rica em detalhes, mas alguns dados ajudam a dimensionar a grandeza do camisa 10:

  • Mais de 800 gols na carreira, somando clubes, Seleção e amistosos oficiais;
  • 508 gols pelo Flamengo, maior artilheiro da história do clube;
  • 71 gols em 118 jogos pelo Udinese (Itália), entre 1983 e 1985;
  • 92 partidas e 66 gols pela Seleção Brasileira, considerando jogos oficiais e amistosos (números variam conforme a fonte, mas todas apontam alta média ofensiva);
  • Tricampeão brasileiro (1980, 1982, 1983) e campeão mundial interclubes (1981) com o Flamengo.

Entre os gols, alguns são constantemente lembrados por torcedores e historiadores:

  • O gol de falta contra o Cobreloa, na final da Libertadores de 1981, no Estádio Nacional de Santiago;
  • A pintura de voleio contra o Bangu, na final do Carioca de 1986, em seu “segundo ciclo” no Flamengo;
  • O gol olímpico pelo Udinese contra a Roma, na Serie A, reforçando a fama de exímio cobrador de bola parada;
  • Os gols contra a Argentina na Copa de 1982, em uma das maiores atuações coletivas daquela Seleção.

Não se trata apenas da quantidade, mas da regularidade em decisões. Ao longo da carreira, Zico manteve média altíssima em mata-matas, finais e clássicos, característica que diferencia grandes jogadores de verdadeiros ídolos.

A camisa 10 sob nova perspectiva: tática, preparação e modernidade

Uma das grandes contribuições de Zico ao imaginário da camisa 10 brasileira foi a forma como ele combinou talento criativo com disciplina tática e preparação física. Ao contrário da imagem do “gênio boêmio” comum em décadas anteriores, ele foi um dos primeiros grandes craques brasileiros a adotar rotina rigorosa de treinamentos, alimentação e recuperação.

Em campo, sua função também antecipava algumas características do meia moderno. Zico não era apenas o “camisa 10 clássico” que ficava solto atrás dos atacantes. Ele retornava para construir desde a intermediária, ajudava na marcação por setor e se deslocava pelos dois lados do campo para abrir espaços. No Flamengo de Coutinho e Carpegiani, variava entre um meia central e um segundo atacante, conforme o contexto do jogo.

Essa versatilidade influenciou toda uma geração seguinte de meias brasileiros. Jogadores como Raí, Rivaldo e Kaká – com características próprias e estilos distintos – herdaram, de alguma forma, essa ideia de um 10 capaz de criar e concluir, pensar e executar. A camisa 10 deixava de ser apenas símbolo de inspiração e passava a representar também comprometimento tático.

Comparações inevitáveis: Pelé, Zico e a linhagem dos 10

Qualquer debate sobre grandes camisas 10 do futebol brasileiro acaba caindo em comparações. Pelé e Zico foram contemporâneos apenas por um breve período, mas pertenceram a contextos muito diferentes. Enquanto Pelé brilhou num Santos dos anos 1960, em um futebol menos físico e com marcação menos intensa, Zico enfrentou um cenário mais competitivo, tanto no Brasil quanto na Europa.

Do ponto de vista estatístico, Pelé tem números inalcançáveis. Do ponto de vista simbólico, Zico representou, para muitos flamenguistas e para parte da torcida brasileira, o ídolo máximo de uma era em que o rádio dividiu espaço com a TV e as imagens de seus gols passaram a correr o mundo. Já em comparação com outros camisas 10, como Rivellino, Sócrates ou, mais tarde, Romário (que, embora fosse 9, tinha importância simbólica similar), Zico se destaca pela constância ao longo de mais de uma década em altíssimo nível.

Para além dos rankings e listas, o que une esses nomes é o peso da camisa 10, tratada no Brasil quase como um patrimônio cultural. Nesse sentido, Zico ajudou a manter acesa a tradição: entre o fim da “era Pelé” e o início da “era Romário/Ronaldo/Rivaldo”, foi ele quem carregou o bastão da genialidade brasileira aos olhos do mundo.

Legado no Flamengo, na Seleção e fora dos gramados

Anos após pendurar as chuteiras, Zico segue presente no cotidiano do Flamengo e do futebol brasileiro. Na Gávea, seu nome batiza instalações, salas e projetos de base. Muitos garotos que hoje sonham em vestir a camisa 10 rubro-negra cresceram vendo vídeos no YouTube de seus gols e faltas, como se ele ainda estivesse em atividade. A ideia de “10 do Flamengo” continua, de certa forma, amarrada à sua figura.

Na Seleção, o legado é mais sutil, mas igualmente marcante. Mesmo sem a Copa do Mundo, Zico virou referência de profissionalismo e entrega. Não é raro ouvir jogadores mais jovens citarem o “Galinho” como inspiração, especialmente aqueles que atuam como meias-ofensivos. A lembrança da equipe de 1982, frequentemente tratada como “a melhor seleção que não foi campeã”, reforça o papel simbólico de Zico em um ideal de futebol ofensivo e criativo.

Fora de campo, o ex-jogador seguiu construindo história como treinador, dirigente e comentarista. Trabalhou no Japão, na Turquia, na Grécia, na Rússia, no Iraque e em seleções nacionais, ajudando a difundir a cultura do futebol brasileiro. Em paralelo, manteve uma relação próxima com o Flamengo, participando de eventos, homenagens e projetos sociais. A imagem pública é de um ídolo acessível, que não se afastou das arquibancadas.

Por que a camisa 10 de Zico ainda encanta novas gerações?

Em um futebol cada vez mais marcado por negociações milionárias, contratos curtos e ídolos que mudam de clube com frequência, a trajetória de Zico se destaca também pela longevidade do vínculo afetivo com um só time. Passou por Udinese e Kasima Antlers, é verdade, mas sua identidade está de forma indissociável ligada ao Flamengo. Essa fidelidade afetiva reforça o tamanho de seu mito.

Para torcedores mais jovens, que não o viram jogar, o fascínio vem de outra fonte: imagens, relatos, números e, principalmente, do contraste com a realidade atual. Como um meia podia marcar mais de 80 gols em uma temporada? Como um jogador podia ser, ao mesmo tempo, cérebro tático e artilheiro de uma equipe campeão mundial?

A resposta está na combinação rara de talento, trabalho e contexto. Zico surgiu em um clube gigante, cercado de bons jogadores, com treinadores que souberam potencializar suas virtudes, em um período em que o futebol brasileiro vivia enorme riqueza técnica. Aproveitou esse cenário com dedicação quase obsessiva ao treino, algo que ele mesmo costuma repetir: “Eu nunca confiei só no meu talento”.

É essa mistura que faz da camisa 10 de Zico mais do que um número: um símbolo de uma época em que o torcedor ia ao estádio com a sensação de que algo extraordinário podia acontecer sempre que a bola chegasse aos pés do “Galinho”. E, na maioria das vezes, acontecia.